Pensata

Vinicius Mota

30/10/2005

Uma semana infernal

O presidente dos EUA, George W. Bush, passou na semana que se encerrou ontem por uma "tempestade perfeita", como gostam de dizer os americanos. Confirmou-se na terça-feira a morte do 2.000° soldado no Iraque; na quinta, a advogada Harriet Miers, espécie de comadre do texano por ele indicada à Suprema Corte, desistiu de enfrentar o processo de confirmação no Senado; e, na sexta, "Scooter" (patinete) Libby, chefe-de-gabinete do vice-presidente, Dick Cheney, e assessor da Presidência, deixou o governo após ser indiciado sob a acusação de ter mentido a autoridades policiais e judiciais durante uma investigação sobre o vazamento do nome de uma agente secreta da CIA à imprensa.

Bush, ainda no primeiro ano do segundo mandato, já bate recordes de reprovação popular, segundo pesquisas. Uma delas mostra que, se a eleição presidencial fosse hoje, ele seria derrotado por um candidato democrata.

Um exemplo muito claro do nível a que chegou a popularidade do presidente americano foi dado pela agência de notícias Bloomberg. O republicano que disputará no dia 8 de novembro próximo o cargo de governador da Virgínia, Jerry Kilgore, simplesmente fugiu de Bush, que visitava o Estado [região do Sul dos EUA tradicionalmente alinhada aos republicanos], por temer ser prejudicado na disputa local se associasse a sua imagem à do presidente. "Bush é um fardo, mesmo na Virgínia", resumiu Larry Sabato, diretor do centro de estudos políticos da universidade estadual local.

Lá como cá, diante do acerbo desgaste político, o governo pretende lançar ao público uma "agenda positiva", que, no entendimento de alguns estrategistas do bushismo, tem de contar com o anúncio de mais corte de impostos, de normas mais rigorosas para conter a imigração ilegal de pobres latinos e de uma nova ofensiva para fazer andar as negociações de paz entre israelenses e palestinos. A clássica tática diversionista.

Mas, ponderando os riscos futuros dos três principais acontecimentos que atingiram a administração Bush na semana passada, eis o que me surge:

1 - O vexame na Suprema Corte
A recusa da obscura Miers foi uma das piores derrotas pessoais do presidente Bush.

Mas derrota para quem? Por incrível que possa parecer, para setores do próprio Partido Republicano, associados à linha autoproclamada neoconservadora, que desejavam e desejam que Bush indique para a corte máxima do país alguém com todas as credenciais ideológicas desse grupo: oposição total ao aborto e a qualquer forma de eutanásia; concordância absoluta com a aplicação da pena de morte; aversão a qualquer heterodoxia liberal na interpretação da Constituição; identificação com o fundamentalismo cristão.

Não enxergaram essas características em Miers e a pressionaram duramente, até que ela desistiu. Trata-se, portanto, de um aspecto importante da disputa interna do republicanismo que já antecipa algo a respeito dos vetores que atuarão na definição do candidato do partido à sucessão de Bush, em 2008.

Antecipa, por exemplo, já uma certa percepção de que o texano pode e deve ser desafiado quando estiver em jogo a relação de forças dentro da legenda e, sobretudo, decisões que digam respeito diretamente ao balanço de forças mais duradouro na sociedade, como é o caso de uma nomeação à Suprema Corte e da própria sucessão presidencial. De todos os riscos surgidos nessa semana, porém, é ainda o mais administrável pelo bushismo, que joga em casa.

2 - A campanha do Iraque
A marca dos 2.000 marines mortos é apenas um emblema.
Não tem significado em si, é arbitrária e configura uma cifra de caídos bem menor do que as de outros grandes conflitos de que os americanos participaram; é pouco significativa diante dos 30 mil iraquianos que, segundo estimativas da ONG britânica Iraq Body Count, já morreram desde a invasão de seu país.

Ainda assim, é um emblema que tem o dom de aderir facilmente ao imaginário da massa do eleitorado americano, como sintoma da tendência firme e monótona de uma matança acumulativa, sem perspectiva de solução no horizonte visível. O atentado com uma betoneira-bomba em plena zona verde (em tese a mais segura, porque mais militarizada) de Bagdá, na semana retrasada, é um dos muitos acontecimentos que favorecem essa desalentada expectativa.

3 - O Plamegate

Aqui, preciso de mais espaço.

O nome de batismo do escândalo vem da espiã da CIA que teve sua identidade revelada pela primeira vez para o público pelo colunista americano Robert Novak, em 14 de julho de 2003. Soube-se então que a agente secreta Valerie Plame era casada com Joseph Wilson, o ex-embaixador que, em 6 de julho de 2003, publicou um famoso artigo de opinião no "New York Times" revelando os resultados da sua missão, a serviço da CIA, de fevereiro de 2002 no Níger, país da África ocidental do qual, segundo rumores, Saddam Hussein estaria tentando adquirir "yellow cake" (urânio processado).

No artigo, Wilson contou que não havia encontrado nenhum indício que confirmasse o rumor. A revelação da ligação entre Wilson e Plame, oito dias depois da publicação do texto no "Times", servia ao claro propósito de desacreditar Wilson --suspeito público desde então de ter-se beneficiado de um laço de casamento, sabe-se lá com que motivação, para ser designado para a missão da CIA na África.

Libby, assessor de Cheney, foi indiciado em decorrência do processo que apura que autoridade pública cometeu o crime de revelar para a imprensa a identidade de uma agente secreta. Mas foi um indiciamento lateral --por obstrução de justiça e depoimentos falsos perante policiais e autoridades judiciais. No texto do procurador responsável pela acusação, Patrick J. Fitzgerald, fica bem claro que Libby soube da conexão entre Plame e Wilson por quatro fontes diferentes de dentro do governo, entre elas o vice-presidente, Dick Cheney, em pessoa.

Fica bem claro que, aos olhos de Fitzgerald, Libby repassou a informação à imprensa. Não foi indiciado pelo vazamento apenas porque o procurador não está convencido, ainda, de que Libby, ao revelar a informação, estava ciente de que Plame era uma agente secreta, cuja identidade está sob o abrigo da lei.

A notícia ruim para o governo Bush foi a de que a investigação de Fitzgerald ainda vai continuar para perseguir seu objetivo principal --identificar o autor do vazamento e estabelecer se estava ciente do status da agente na CIA, que requeria a manutenção do sigilo sobre a sua identidade. Na mira do procurador estão Karl Rove, o principal assessor político-eleitoral de Bush, eminência parda de sua gestão, e o próprio vice-presidente, Dick Cheney. O potencial de vultosos danos futuros para a administração republicana, portanto, continua intacto.

Mas há algo que pode ser ainda pior para Bush. O que está em jogo nessa investigação não é "apenas" um crime de vazamento de informação sigilosa rondando a chefia da Casa Branca. Existe um risco ponderável de que as apurações exumem evidências de como foi montada a farsa para convencer opinião pública e congressistas nos EUA da necessidade de invadir o Iraque de Saddam Hussein.

É o risco de o Plamegate tornar-se Iraqgate; de desencadear uma onda irreversível de revolta e indignação na direção da pergunta que o cartunista Mike Luckovich fez aos leitores do "Atlanta-Journal Constitution" na semana passada. Escrevendo o nome de cada um dos 2.000 soldados americanos mortos no Iraque, compôs um enorme e eloqüente "Why?".
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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