Pensata

Vinicius Mota

06/11/2005

Em busca de cérebros

Um importante trabalho sobre as tendências mundiais da migração contemporânea foi recentemente publicado pelo Banco Mundial. O estudo de Frédéric Docquier e Abdeslam Marfouk, intitulado "Migração Internacional por Atributos Educacionais", consegue estabelecer as grandes linhas do fenômeno que chama de "drenagem de cérebros". Mede o impacto global da mudança de padrão nas políticas de imigração dos países centrais, agora orientadas para maximizar a atração de estrangeiros qualificados.

A pesquisa foi feita no universo censitário dos 30 países da OCDE (bloco que inclui todas as potências econômicas, mas não se restringe a elas), onde, de acordo com a estimativa dos autores, vivem nove em cada dez imigrantes com alta qualificação educacional (pessoas com pelo menos 25 anos de idade e diploma universitário). O estudo leva em conta apenas a fatia dos estrangeiros com situação migratória legalizada no país que os recebeu.

Elenco três conclusões mais gerais do trabalho que apontam para o sentido geral desse movimento, que é o de uma competição instalada entre as nações ricas para atrair trabalhadores qualificados da periferia --cuja contraface é barrar e criminalizar a entrada dos menos qualificados-- que tem impactos imediatos negativos muito fortes em algumas das regiões mais pauperizadas do planeta.

1. Crescimento induzido

Em 1990, havia 12,5 milhões de imigrantes com alta qualificação educacional vivendo em países da OCDE. Dez anos depois, esse estoque havia atingido 20,4 milhões. A taxa de crescimento desse estrato dos mais escolarizados (63%) foi bem superior à do aumento do montante total dos imigrantes (41%) no período, o que elevou a participação relativa da fatia dos mais qualificados no universo dos imigrantes do bloco. Em 2000, 35 em cada cem estrangeiros vivendo na OCDE tinham qualificação educacional elevada.

Esse avanço se deu à custa da diminuição relativa do estrato dos menos escolarizados e está relacionado a políticas muito ativas de atração seletiva de mão-de-obra estrangeira que têm sido implementadas desde a década de 1980. Ao mesmo tempo, a entrada de imigrantes de baixa qualificação vai se tornando mais e mais um caso para a polícia, e não para a política, como se tem visto em toda a Europa e nos EUA --drama este que tem tido a participação crescente de brasileiros que tentam entrar ilegalmente em solo americano.

2. Quem mais ganha

Mais da metade dos imigrantes mais escolarizados vivendo na OCDE morava nos EUA em 2000. Se forem incluídos nessa conta o Canadá, a Austrália, o Reino Unido, a Alemanha e a França, tem-se que, de cada 100 imigrantes qualificados, 85 vivem nesse conjunto de seis países. Na disputa interna ao sexteto da elite, os EUA e as três nações européias conseguiram ampliar sua fatia no bolo ao longo da década de 1990; enquanto Canadá e Austrália perderam terreno.

A força atrativa desproporcional dos EUA nesse setor se dá a despeito de a taxa de emigração de trabalhadores qualificados americanos ser a segunda mais baixa do mundo (só 0,5% dos americanos com diploma vivem em algum outro país da OCDE). Ou seja, além de praticamente não exportar trabalhadores qualificados, é a nação que, de longe, mais os importa.

3. Quem mais perde

Países pequenos e pobres são os que mais sofrem com a drenagem de cérebros. As mais altas taxas de emigração de mão-de-obra qualificada estão em pequenos países pobres insulares (onde 42,4% dos mais escolarizados vivem no exterior), no grupo dos países considerados pela ONU os menos desenvolvidos (13,2%) e na África Sub-Saariana (12,9%). Exemplo gritante é o problemático Haiti, onde, em cada 100 pessoas com diploma universitário, 84 vivem em algum país da OCDE. Nações africanas como Gana (46,9%), Moçambique (45,1%), Uganda (35,6%) e Angola (33%) também têm parcela importante de seus trabalhadores mais qualificados vivendo no exterior.




Apêndice

Para quem tem interesse no assunto, cito abaixo cinco outros achados do estudo (do ponto de vista de um leigo) que me chamaram a atenção, mas que são mais específicos:

- Especialistas em exportar cérebros

Dentro dessa demanda cada vez mais seletiva por trabalhadores qualificados, da parte dos países centrais, algumas nações se tornam como que especializadas em fornecer esse tipo de mão-de-obra. Taiwan é o campeão nesse quesito. Em cada 100 imigrantes taiwaneses residentes na OCDE, 78 têm alto padrão de escolaridade. A seguir vem uma curiosa seqüência de países do golfo Pérsico (Qatar, Kuwait e Emirados Árabes Unidos). As nações com as maiores taxas de seleção de seus emigrantes em geral são populosos. As Filipinas (67,1% de emigrantes qualificados), a Índia (60,5%) e o Canadá (60,1%) são bastante seletivos em exportação de mão-de-obra e ao mesmo tempo estão entre as nações que mais mantêm imigrantes na OCDE em termos absolutos. Ou seja, conseguem um efeito de escala com qualidade.

- Políticas agressivas de atração de cérebros

Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Suíça são países que se destacam por ter adotado programas muito ambiciosos de atração de imigrantes com bastante ênfase nos mais qualificados. A Austrália lançou essa moda, no ínicio da década de 1980, adotando oficialmente o critério de seleção pela contribuição que o imigrante poderia dar à economia do país. Outros, como a Nova Zelândia, que atribuiu uma pontuação aos postulantes, e o Canadá, lhe seguiram os passos. O resultado é sociologicamente interessante. Hoje, para cada grupo de quatro pessoas vivendo na Austrália, uma é imigrante (os mais escolarizados ocupando a fatia preponderante). Um país que entrou tardiamente nessa disputa foi a Irlanda, que se industrializa rapidamente. A proporção de imigrantes em sua população passou de 6,3% em 1990 para 10,9% uma década depois, sendo que a parcela dos imigrantes mais escolarizados mais que triplicou no mesmo período.

- O caso da Índia

A Índia é talvez o exemplo automático de um país com grande participação na emigração de cérebros. O estudo, no entanto, faz uma ponderação interessante sobre o país. A quantidade de indianos qualificados vivendo na OCDE é grande em escala --1 milhão--, mas pequena se comparada ao estoque de pessoas nascidas na Índia que possuem diploma universitário. Desse montante total, apenas 4,3% estão no exterior, o que inclui a nação asiática na lista dos países com mais baixas taxas de emigração. Ou seja, a Índia (como também o Brasil, que possui taxa de emigração de apenas 2,2% nesse estrato) ainda consegue manter no país mais de 90% de seus trabalhadores qualificados. É claro que o estudo é incapaz de medir o impacto qualitativo dessa migração. Supõe-se que, dentre os que têm diploma superior em um país como a Índia, haja uma preferência das nações ricas de importar os mais geniais.

- A diáspora filipina

Mas a Índia é superada pelas Filipinas (cuja população equivale a apenas 8% da indiana) na quantidade de trabalhadores qualificados atuando na OCDE. Há 1,1 milhão de filipinos com alta escolaridade nessa condição. Além disso, os filipinos estão entre as nacionalidades que praticamente só exportam mão-de-obra qualificada: de cada 100 trabalhadores das Filipinas que vivem na OCDE, 67 têm formação superior. E esse fenômeno tem uma escala ainda maior, pois um dos principais destinos dos trabalhadores filipinos, os países produtores de petróleo do golfo Pérsico, está fora do escopo da OCDE e não foi captado pela pesquisa.

- Ex-URSS exporta pouco

Uma outra constatação é a de que, entre os países que menos cedem mão-de-obra qualificada no mundo, há uma grande concentração de ex-integrantes da extinta União Soviética. O Tadjiquistão é o campeão mundial, com apenas 0,4% de seus trabalhadores mais qualificados vivendo na área da OCDE. Na lista dos menos exportadores também constam: o Uzbequistão (0,7%), o Cazaquistão (1,2%), a própria Rússia (1,5%), a Geórgia (1,6%), o Azerbaijão (2%), Belarus (3,2%) e a Ucrânia (3,5%). Ou seja, a hipótese de que, após o desmantelamento do socialismo real, o mundo desenvolvido se veria abarrotado de farta mão-de-obra qualificada oriunda da região da ex-URSS não se confirma por essa pesquisa.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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