Pensata

Vinicius Mota

05/12/2004

A vitória de Bush estava escrita e o roteiro era de Michael Moore

A simplificação da realidade é a linguagem preferida dos governantes. Quanto mais autoritário é o regime ou quanto mais propícias ao autoritarismo são as circunstâncias nas quais o mandato é exercido, mais essa preferência pelos contrastes banais e pelo raciocínio alegórico ao rés do chão é exacerbada.

O 11 de Setembro foi a circunstância que permitiu a Bush desfraldar de vez todo o seu repertório maniqueísta. Quem não está conosco está contra nós; estamos defendendo a civilização; combatemos o eixo do mal (na verdade expressão cunhada na era Clinton mas recebida de muito bom grado pelos republicanos); encetamos a cruzada contra o terrorismo e a guerra ao terror. Estes são alguns exemplos da maneira peculiar do bushismo de lidar com o público.

Ter visto "Fahrenheit 11/9", de Michael Moore, após a reeleição de George W. Bush fez aumentar em mim a sensação de que a vitória do bushismo foi acachapante a ponto de ter aprisionado a oposição --o filme é uma espécie de Manifesto do Partido Democrata-- ao ambiente mental libertado das profundezas após o encontro fortuito entre os neoconservadores americanos e os terroristas genocidas do 11/9.

Michael Moore apenas inverteu os termos de Bush. O mal não são os outros; o mal é o próprio Bush. Ele é tão mau e tão ambicioso, no argumento do cineasta, que comanda uma nação inteira, uma economia de mais de US$ 11 trilhões, com o intuito obsessivo de fazer engordar a sua fortuna familiar e a dos seus asseclas. Por isso deixou parentes de Bin Laden escapar dos EUA após o 11/9; por isso invadiu o Afeganistão. Ele é tão mau que tomou de assalto a Casa Branca e mantém em cativeiro os verdadeiros valores libertários dos EUA. Ele é tão mau que ludibria a boa-fé dos soldados, mandados para morrer no front iraquiano. Tão mau que escolhe os mais pobres e desempregados para arriscarem-se na guerra.




(Note o leitor que estou eu próprio depurando a retórica de Moore, no intuito de tentar chegar as suas matrizes intelectuais)




Onde está, no filme de Moore, a onda conservadora que praticamente retirou os democratas do mapa da política americana? Estão lá dois ligeiríssimos exemplos dela, mas colocados no roteiro com o intuito de ridicularizar essa parte do eleitorado que havia dado ao republicano do Texas pouco menos da metade dos votos nacionais em 2000 e que não agiu diferentemente em 2 de novembro de 2004.

Moore faz troça com uma "entrevista" arrancada da popstar Britney Spears, na qual ela diz que confia em Bush. Trata com cinismo renitente o caso da senhora que se diz democrata, que hasteia a bandeira todas as manhãs e diz que está orgulhosa de ter filhos nas Forças Armadas, como se o cineasta dissesse: "Mais uma patriota sincera iludida pelo malévolo e interesseiro Bush".

O espectador vê o filme, fica revoltado com Bush, mas sai sem entender por que, afinal, tamanha maldade foi premiada com um caminhão de 60 milhões de votos. Falhou o instinto do documentarista; sucumbiu ao do propagandista.




Outro caso notável diz respeito ao tratamento, no filme, das operações dos EUA no Iraque. O morticínio civil no Iraque provocado pela invasão libertadora dos marines é uma catástrofe humanitária. Moore passa feito um raio sobre esse tema. Mostra imagens fortes do início dos bombardeios: um bebê morto exposto à câmera, uma caçamba de camionete carregada de cadáveres, uma mulher em desespero diante da casa de um tio em ruínas, pessoas desfiguradas recebendo atendimento médico.

Mas não está interessado em desvendar a dimensão dessa tragédia. Prevalece a comparação fácil com o Iraque pouco antes da invasão --ianças brincando alegremente num playground, uma festa de casamento. Moore não tem tempo para aprofundamento; corre para chegar logo ao que importa: negociatas de Bush, mortes de soldados e sofrimento da família; recrutamento quase que forçado de jovens num bastião do desemprego americano; congressistas insensíveis que não querem alistar seus filhos.




A retórica de Moore, embora inverta os significados, na forma aceita o mundo simplificado, moralista, o dualismo estanque dos neoconservadores. A não ser pelo, de novo, brevíssimo lampejo das imagens sobre o recrutamento de marines num reduto do desemprego e da desindustrialização dos EUA, o filme passa ao largo de dissecar ou tentar compreender os contornos do conflito de classes que permeia a sociedade americana atualmente. O filme, por aí também, poderia ter captado o apoio dos setores populares aos republicanos, que foi decisivo para a reeleição e para o aumento da votação de Bush.

Mas não. Michael Moore, sem romper os limites do ambiente mental emitidos pelo bushismo, narrou, em negativo, a vitória completa de George W. Bush.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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