Pensata

Vinicius Mota

25/12/2005

Sucessão nos Andes

Não é fortuita a chegada ao poder de Evo Morales na Bolívia. A sua trajetória é uma das contrafaces políticas de uma marcante e acelerada mudança demográfica por que vem passando a sociedade boliviana (em especial o seu segmento, majoritário, de pobres indígenas) nas últimas décadas.

A Bolívia foi o caso de maior aceleração da taxa de urbanização na América do Sul constatada pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) nos últimos 15 anos. Em 1990, pouco mais da metade de sua população vivia em cidades. Hoje, essa fatia já supera os 70%. El Alto, conglomerado de favelas no subúrbio de La Paz, base dos movimentos indígenas que chacoalharam a política boliviana neste ano de 2005, é a síntese perfeita desse fenômeno, conjugando o inchaço urbano advindo do êxodo rural e a emergência de grupos políticos associados à identidade indígena. A população da região metropolitana de La Paz ficou 30% maior de 1990 a 2000.

Mais recente ainda é a ascensão do gás natural como o principal produto de exportação do país. Em 1995, era apenas a quinta mercadoria na pauta das vendas externas bolivianas ou 8% do que o país exportava. Oito anos depois, já amplamente majoritário, o gás já era responsável por quase um quarto das exportações bolivianas.

Na conjunção dessa dupla emergência --a de uma categoria social que disputa o poder e a de um produto primário de exportação-- residem o grande desafio e os principais riscos da política boliviana atual. O movimento pela nacionalização das jazidas de gás, uma forte bandeira dos grupos indígenas, convive com o pleito das elites tradicionais "brancas", do Chaco, por mais autonomia para os departamentos --isto é, direito de as regiões produtoras (leia-se o próprio Chaco) se apropriarem de maior quinhão da renda do gás.

Dos conteúdos concretos que forem sendo incorporados a essa ainda amorfa, porque disputada, idéia de "nacionalização" das jazidas é que vai depender o sucesso ou o fracasso do governo de Morales. Não há muita dúvida de que era necessário, possível e até esperado pelas multinacionais que operam na Bolívia, que o Estado, sob pressão distributiva crescente desses atores políticos emergentes, ampliasse o seu controle sobre as reservas de gás do país, onde, aliás, imperava a selva regulatória. É um caso de exercício de soberania análogo ao que aplicam outras nações dependentes de exportações de combustíveis (caso dos árabes, por exemplo).

O potencial de conflitos e rupturas aumentará bastante, no entanto, se Morales ignorar o terreno minado em que governará para lançar-se a uma aventura "revolucionária", por exemplo realizando expropriações de ativos ou estatizações forçadas no setor energético. A Bolívia não é a Venezuela, onde já havia uma grande estatal petrolífera monopolista quando Chávez assumiu --tudo o que teve de fazer para consolidar sua ascensão bonapartista foi controlar politicamente a PDVSA.

Esperemos, portanto, pelos primeiros passos do presidente Morales.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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