Pensata

Vinicius Mota

08/01/2006

Discurso em pane

O antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977), no libelo anarquista "A Sociedade contra o Estado", fabulou uma imagem célebre, que ajudou a convencer gerações de que a origem de toda opressão não residia nas relações econômicas de produção, como apregoavam os marxistas, mas no Estado. Estudioso de nações indígenas do Chaco paraguaio, é dele o roteiro do chefe tribal tido como um craque da oratória compelido todo dia, fosse de manhã fosse ao cair do sol, a dirigir-se ao povo de sua aldeia e proferir um belo discurso. Mas falava ao vento. Ninguém na tribo lhe dava a mínima atenção.

Tudo para fazer emergir do exemplo --que é apenas um em meio a outros que Clastres desfralda nos ensaios contidos na obra e que vão na mesma direção-- uma espécie de inteligência coletiva que ritualiza diariamente a desimportância da chefia. As palavras do líder estão esvaziadas de poder, configurando, na interpretação já delirante do antropólogo, um ataque preventivo à emergência de estruturas mais complexas de dominação da sociedade --o Estado.

Pois essa série quase massacrante de falas presidenciais estapafúrdias, que teve seu ápice até o momento na entrevista transmitida pelo "Fantástico" no primeiro dia de 2006, me fez lembrar do chefe primitivo de Clastres. O que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz já não tem importância. Ainda assim, sente uma compulsão que não se sabe de onde vem --talvez seja mesmo inerente ao posto de primeiro mandatário--de seguir discursando, como num ritual reiterado que marca o esvaziamento do poder de sua palavra.

Diferentemente do chefe indígena, mestre da eloqüência, a desimportância dos discursos de Lula provém um tanto da rarefação de sentido do pensamento que expressa. Mas, exatamente como na fábula de Clastres, é na ausência de platéia que se expressa a solidão da palavra.

Para quem fala Lula? Já não é para a turma da teoria conspiratória, pois o presidente abandonou o "complô das elites". Não é para seus "companheiros" de partido nem para os anjos caídos de seu governo, pois nem o PT nem os ex-homens fortes do Planalto têm merecido defesa presidencial enfática. Tampouco chega a ser para os setores de opinião que desejariam a expiação inequívoca dos erros e das falcatruas ocorridas em seu governo, pois Lula se mantém no figurino inverossímil e amorfo do marido traído, aquele que é o último a saber.

Parece que tenta inventar um discurso que contente um pouco cada uma dessas audiências. Impossível. Quanto mais fala, mais se apaga.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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