Pensata

Vinicius Mota

15/01/2006

Pane nos modelos

"Uma grande questão é se o Brasil e o México, as duas maiores economias [latino-americanas] seguirão o caminho de sucesso do Chile ou sucumbirão a tentações populistas, sejam de variedade branda como a argentina (controles de preços, incerteza regulatória) ou mais extremadas como a venezuelana, que põe a democracia sob risco aspirando ao sonho bolivariano de unir a América Latina."

O trecho acima foi retirado do artigo "A Fork in the Road" (algo como "uma bifurcação no caminho"), publicado no número de dezembro da revista "Finance & Development", do FMI. Seu autor, Armínio Fraga, presidente do Banco Central no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, está preocupado com os resultados do ciclo eleitoral latino-americano deste ano. Suas obsessões, que reverberam o pensamento médio da vanguarda financista global, são: 1) espancar a hipótese de que a receita que ele próprio chama de Consenso de Washington tenha relação com o baixo crescimento econômico e os altos indicadores de risco de crédito da região na comparação com a Ásia ou conjunto dos emergentes; 2) amaldiçoar o futuro de Argentina e Venezuela que, julga, se desviaram do bom caminho; 3) advogar que o baixo desempenho, nos demais países, é decorrência de a plataforma do Consenso não ter sido totalmente implantada; e 4) concluir que a política é que dificulta o avanço mais rápido dessas reformas e que, portanto, precisa ser reformada ela mesma.

Examino dois dos principais argumentos presentes no texto:

1) Nos anos 1990, porque os países da região utilizaram a receita correta, ortodoxa, para combater a inflação e reformar sua economia, apresentaram taxas maiores de crescimento do que nos anos 1980. Uma questão tão simples como a de como definir o que se entende por "anos" 1980 e 1990 muda o resultado da conta. Tome-se o Brasil. De 1981 a 1990 (o que se convenciona chamar de década de 1980), o PIB cresceu à média anual de 1,6%, enquanto na década imediatamente seguinte, a expansão foi de 2,6% ao ano. Ponto para Armínio.

Já no que se chama de "anos oitenta" (1980 a 1989), a economia brasileira cresceu 2,9% em média ao ano, taxa que caiu para 1,9% nos dez anos seguintes. Ponto contra Armínio. O que está mais correto? Qual das duas foi a "década perdida"? Vale retirar uma lei geral de números tão arbitrários? Não. De resto, é uma complicação sem fim estabelecer para a história econômica, quanto mais para a história econômica comparada, uma relação de causa e efeito tão linear quanto a proposta no artigo.

2) "Argentina e Venezuela estão crescendo rapidamente porque estão se recuperando de recessões profundas e estão se beneficiando do rápido crescimento mundial e de termos de troca bastante favoráveis (especialmente a Venezuela). Mas, a despeito dessa impressionante recuperação econômica, esses países têm ainda de inspirar confiança na sustentabilidade de seus caminhos de crescimento de longo prazo."

Complicado o argumento. A Argentina cresce à taxa média de 8,7% há três anos. Desde o primeiro momento da retomada, profetas do apocalipse vêm dizendo que ela teria fôlego curto. A economia argentina precisa parar de crescer logo para caber no modelo de Armínio. A Argentina e a Venezuela se beneficiam do crescimento mundial e dos termos de troca favoráveis às suas exportações? Sim. Não é o mesmo que ocorre com o Chile, a estrela do modelo de Armínio, país primário-exportador pouquíssimo industrializado e com população equivalente à da Grande São Paulo? E os populosos e industrializados Brasil e México, da disciplina fiscal e das reformas, por que aproveitam mal a mesma onda?

Por falar em confiança para os investidores e na necessidade de "reforma política" para viabilizá-la, que garantias se pode ter da China, ditadura comunista burocratizada ao extremo em que campeia a corrupção e que controla preços, a começar do câmbio fixo? A Rússia do autocrata Putin e das máfias, de que a Europa é cada vez mais dependente energeticamente, é confiável? Inspira mais ou menos confiança que a Venezuela do mambembe Hugo Chávez, que continua a entregar regularmente petróleo aos Estados Unidos?

Há pouca explicação e muita ideologia no texto de Armínio Fraga. Ele passa ao largo de fatos básicos e realidades locais que precisariam ser levados em conta mesmo em sobrevôos argumentativos como o que empreende. Exatamente como opera a esquerda que o combate, o objetivo de Armínio, no texto, é tentar convencer os seus leitores de que o mundo cabe dentro de um "processo histórico" inexorável. Mas ele não cabe. Sua essência é a impureza.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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