Pensata

Vinicius Mota

29/01/2006

O Estado segundo Ratzinger

Bento 16 publicou na semana que passou a sua primeira carta aos católicos, dentro da tradição dos pontífices de externar periodicamente, por meio dessas encíclicas, as suas considerações teológicas ou pastorais. "Deus Caritas Est" ("Deus é amor", título retirado do famoso trecho da 1ª Carta de João) tem lá a sua teoria do Estado e da ação política.

Ela está concentrada na segunda parte do documento, "A prática do amor pela igreja enquanto comunidade de amor". Após tecer uma espécie de genealogia dos serviços de caridade ("diakonia") na tradição cristã e de situá-los na tríade que constitui a "natureza íntima" da Igreja Católica (ao lado da proclamação da palavra divina e da liturgia), chega o momento de Bento 16 discutir a relação da igreja com o Estado.

O primeiro movimento é o de refutar a idéia, divulgada "sobretudo pelo pensamento marxista", de que a prática da caridade está em contradição com o desígnio de "criar uma ordem mais justa', que levasse os homens a prescindir da própria caridade. O fato, diz o papa, é que a panacéia marxista soçobrou. Além disso, continua, nem a sociedade mais justa elimina as situações em que a caridade cristã é chamada a agir: "Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão."

Ou seja, o ativismo cristão, entendido como prática desinteressada da caridade, terá sempre espaço para agir, até porque atua no plano da afetividade pessoal, aonde o Estado, argumenta o pontífice, jamais chegará.
Mas o papa adverte que a caridade cristã não pode confundir-se com ativismo político, aquele devotado a "mudar o mundo de maneira ideológica". É o piparote que descarta, sem nomeá-las, todas as derivações marxistas desenvolvidas na periferia da igreja, entre elas a Teologia da Libertação. Contra elas, Bento 16 não se cansa de elevar o exemplo do serviço de madre Teresa de Calcutá.

Desse prisma, parece até que o Estado se torna uma preocupação secundária na economia argumentativa da encíclica. Afinal, os serviços de caridade cristãos devem estar alheios a partidos e ideologias e a qualquer perspectiva de poder temporal. Devem preocupar-se com as necessidades imediatas dos que sofrem; devem "fazer bem aos homens gratuitamente", como mero "instrumento nas mãos do Senhor".

Maior fica a impressão de distanciamento do poder temporal com a leitura de passagens como esta: "Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus, isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano 2º, a autonomia das realidades temporais".

Mas a argumentação do papa abre uma brecha. Os passos são os seguintes: 1) o Estado é definido como o provedor da justiça; 2) a justiça é entendida como um termo aberto, à procura de definições racionais; 3) a fé tem o condão de "purificar" a razão e ajudar a definir o que é, caso a caso, uma ação justa e como empreendê-la.

"É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor àqueles que não compartilham a fé perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado."

A ação política, que parecia estar sendo negada, volta com força, mas numa chave bem mais restrita. A igreja tem a obrigação de dizer ao Estado o que são as formas mais elevadas da justiça. Como é a cúpula que exerce o trabalho de "depurar a justiça" na Igreja Católica, aí tudo bem. Aos demais resta o trabalho desinteressado do amor.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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