Pensata

Vinicius Mota

12/02/2006

Do direito à blasfêmia

O vetor que emerge de toda a confusão em torno das charges dinamarquesas figurando o profeta Maomé é um consenso liberticida. De modo surpreendente, os governos despóticos do mundo islâmico, aliados aos movimentos de fanáticos que pregam e empreendem a destruição de tudo o que lhes pareça ocidental, conseguiram fazer vingar a idéia de que a blasfêmia deve ser banida da vida pública nas democracias modernas. Para tanto, contaram com o beneplácito do mundo cultural europeu e norte-americano --com repercussões devidamente reproduzidas no Brasil--, embebido num relativismo de pé quebrado e atormentado pela má consciência. São menos os que nadam contra essa maré.

Este não é, como freqüentemente se afirma, um debate que anteponha a liberdade de expressão ao respeito que é devido à crença de cada um. Como escreveu o filósofo francês Alain Finkielkraut no "Libération", "é a dolorosa renúncia ao absolutismo das convicções que funda, simultaneamente, a liberdade de expressão e o respeito às crenças".

Traduzindo, a democracia permite que se digam desaforos sobre o Deus em que creio porque me é facultado desafiar a crença ou a descrença dos outros. Ou, como colocou em editorial o "Le Monde", "as religiões são sistemas de pensamento, construções do espírito, crenças que são respeitáveis, mas que podem ser livremente analisadas, criticadas e até ridicularizadas. O mesmo vale para as ideologias políticas".

O que de fato está em questão é se os responsáveis pela produção cultural nas democracias modernas devem se impor uma autocensura, interditando a publicação de peças que, dentro de um sistema religioso (no caso, o islã), sejam proibidas. Ao que a resposta preponderante tem sido "sim", vide os acordos, tácitos ou explícitos, entre grandes meios de comunicação nos EUA e no Reino Unido para que as charges não sejam publicadas mesmo tendo o assunto se tornado notícia não pelos desenhos em si, mas pela violenta reação a eles no mundo muçulmano.

(Abro aqui um parêntese para lembrar que insultos dos mais variados calibres contra todas as religiões e todos os que não têm religião e tudo o mais que possa ser insultado estão a dois cliques de acesso das pessoas na internet diariamente. Nem por isso dão ensejo à destruição de sinagogas, mesquitas, igrejas, embaixadas ou carrinhos de pipoca.)

Pressão psicológica

Este tampouco é um tema em que a atuação dos governos americano ou europeus faça muita diferença. George W. Bush, Jacques Chirac e outras lideranças têm agido no sentido de pedir aos órgãos de imprensa de seus países que não publiquem as ilustrações. Fazem-no por compreensível cálculo político, embrenhados que estão nas disputas de poder do Oriente Médio e, caso dos europeus, tendo que lidar com uma população muçulmana crescente em seu próprio território.

Bush, Chirac, Blair e colegas, porém, não têm como ir além da política do gogó. Não podem baixar um ato institucional proibindo a publicação dos desenhos, pois atuam limitados pelas leis e pelos demais controles constitucionais que garantem ao cidadão o direito de expressar-se como bem entender a menos que a Justiça, após provocada, decida proibir esta ou aquela manifestação.

Faço a digressão apenas para enfatizar o meu ponto: o alvo desse novo avanço do "politicamente correto" são os produtores de cultura. São eles que, tendo assegurada a liberdade de publicar ou não publicar itens que possam ser lidos como blasfêmia, estão sendo pressionados a autocensurar-se. Os que aceitam os termos desse debate estão importando uma maneira tipicamente religiosa, dogmática, de enxergar a realidade. No caso de veículos de tradição liberal --seja de direita, seja de esquerda--, significa necessariamente uma predisposição a sonegar informação relevante ao seu público.

Digamos que, um dia depois do atentado suicida que matou mais de 50 numa festa de casamento em Aman (Jordânia), o cartunista do jornal que edito me submetesse os 12 desenhos dinamarqueses para avaliação. Certamente eu escolheria dois deles como publicáveis: o que retrata o profeta com o turbante-bomba e o que o figura na porta do paraíso dizendo a uma legião de homens-bomba que chega: "Pára aí, acabaram as virgens". Defenderia a publicação do segundo, o melhor porque seu humor cortante faz refletir sobre a interpretação distorcida e homicida da religião que fazem os terroristas suicidas. A publicação correria o risco de ofender susceptibilidades muçulmanas? Paciência.

O fato é que um jornal da Dinamarca decidiu publicar, em setembro, as 12 charges de uma vez, num ato evidentemente provocativo. Mas o jornal é de direita; está direcionado a um público que tem dificuldades sociais e ideológicas de aceitar o avanço da imigração muçulmana na Europa; que associa a ameaça terrorista no continente a esse fluxo de fiéis de Maomé; que quer fechar as fronteiras de seu país; e que, contudo, não tem promovido nada parecido com uma onda de violência ou de perseguição contra a comunidade islâmica dinamarquesa. Enfim, o jornal publicou algo que, julgou, seria acolhido por seus leitores. Um ato legítimo. Ou vamos proibir publicações de direita?

De resto, tratou-se da execução de uma pauta de cultura do jornal dinamarquês. O editor estava justificadamente atormentado com o fato de um livro infantil sobre o profeta islâmico não ter encontrado ilustrador, pois os desenhistas temiam ferir a veleidade dos muçulmanos. Então propôs o tema para 12 cartunistas, como um desafio a essa propensão à autocensura, e publicou o trabalho todo, no que fez muito bem.

Como legítimo foi o sentimento de indignação que surgiu, como reação aos desenhos, em parte da comunidade islâmica local --digo "parte" porque passagens do Corão, como escreveu no "Wall Street Journal" a ativista Irshad Manji, podem ser interpretadas no sentido de que ninguém deve ser forçado a tratar como sagradas as normas islâmicas. O caminho para canalizar a queixa de quem se sentiu ofendido era a Justiça, dinamarquesa e européia. É ela que dá sentido ao termo "Liberdade de expressão tem limites", lugar-comum nestes dias.

Por fora das instituições

Se as charges feriram alguma norma civil, criminal ou de direitos humanos --a Dinamarca e a Europa as têm em abundância--, então a republicação das ilustrações poderá ser proibida, bem como seus responsáveis, condenados a desembolsar dinheiro grosso a título de reparação material.

Mas um processo na Justiça teria necessariamente de levar em conta os argumentos de defesa de quem publicou as charges, que não são fáceis de ser vencidos. Vejamos alguns quesitos desse hipotético embate:

1) Figurar Maomé de turbante-bomba é associar toda uma religião ao terror suicida. Ao que o editor poderia responder: "Não necessariamente. A ilustração, como toda ilustração, está aberta a interpretações. A maioria dos nossos leitores, julgo, sabe que a associação entre islã e terror é uma exegese bastante particular e minoritária entre os que professam aquela fé e entende o desenho como uma crítica a essa leitura homicida. De todo modo, não foi o meu jornal que inventou a ligação entre o islamismo e os homens-bomba, foram os jihadistas, que insistem em demonstrar a sua interpretação dos escritos sagrados periodicamente se explodindo e matando gente inocente, inclusive outros muçulmanos".

2) Os desenhos são grosseiros e de mau gosto, portanto impublicáveis. Resposta: "Toda charge é grosseira, senão não seria charge. O nome vem do verbo francês "charger", que significa "carregar". Carregar nas tintas, exagerar no humor com mordacidade é a própria razão de ser dessas ilustrações há mais de século. Não cabe a este tribunal imiscuir-se em questões de gosto, que são de foro íntimo".

3) Em nome da boa convivência entre as religiões na Dinamarca, ofensas graves a dogmas de fé deveriam ser proscritos. Resposta: "Se aceitar a tese, a corte estará abrindo um perigoso precedente. Quem vai estabelecer o índex das ofensas graves, médias e leves? Anúncios de preservativos e anticoncepcionais, de carne de porco e boi serão ofensas graves ou leves perante católicos, muçulmanos e hindus? O que é obsceno: retratar o profeta Maomé ou ter nossas embaixadas depredadas, nossos cartunistas e nossos cidadãos no exterior ameaçados de morte e as redações dos jornais europeus que publicaram as ilustrações, de atentados? A Justiça, em nossa democracia laica, não deve emprestar os códigos restritos e conflitantes das diversas religiões para tomar as suas decisões. Deve ater-se à impessoalidade das leis do Estado".

4) Os desenhos representam ameaça à liberdade de culto na Dinamarca. Resposta: "Creio que não. A comunidade islâmica continua a praticar seus ritos livremente neste país".

5) As ilustrações incitam ao ódio religioso. Resposta: "Não aqui. Não há registro de conflitos entre cristãos e muçulmanos nem de templos depredados. O que ocorre na Síria, no Líbano, no Irã, no Afeganistão não é da alçada deste tribunal. A comunidade islâmica dinamarquesa e européia protesta pacificamente e publica suas mensagens de repúdio ao nosso jornal dentro das regras do jogo. Creio até mesmo que a maioria dos cidadãos dinamarqueses apoie a sua causa".

De onde vem a pressão

Mas por que será que essa batalha não se trava, como deveria, nos trâmites institucionais do Estado de Direito europeu? Imagine o leitor a lição de civismo que dariam as entidades muçulmanas moderadas do continente se levassem a sua queixa à Corte Européia de Direitos Humanos, mesmo que o resultado tenda a ser, do meu ponto de vista, uma derrota ou uma vitória parcial de sua causa.

Ocorre que, ao menos por ora, os moderados estão sendo capturados pela histeria criminosa dos fanáticos que depredam representações diplomáticas e símbolos ocidentais nas ruas de Damasco, Teerã, Beirute, Cabul e nos territórios palestinos. Tudo devidamente orquestrado pelo regime iraniano, pelo sírio e pelo Hamas e apoiado por outras elites árabes, como a saudita, que endurecem na reação ao "insulto religioso" a fim de não perder o controle de suas ditaduras para os movimentos extremistas. A agenda que brotou desse arranjo do que há de mais despótico, retrógrado, intolerante e ofensivo aos direitos humanos no globo foi alegremente absorvida no mundo intelectual e cultural europeu e americano.

Palmas para Amanda Bennett, a editora do "Philadelphia Inquirer" que furou o bloqueio da grande imprensa dos Estados Unidos e publicou as charges. Foi um modo corajoso de dizer que ela não aceita os termos do debate que essa associação entre despotismo, terrorismo e má consciência ocidental tentou lhe impor.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca