Pensata

Vinicius Mota

18/12/2004

O caso com a Argentina. De novo.

As regras da convivência emocional no Mercosul estão estabelecidas há tempos. A Argentina por vezes irrompe como o "enfant terrible" da relação. Esperneia, estabelece cotas de proteção para alguns de seus produtos, ameaça partir para outra. E o Brasil, o "enfant gaté", contemporiza, evita alimentar a tensão, deixa de retaliar. Foi assim com a dupla Menem-FHC, foi assim com a dupla, mais efêmera, De la Rúa-FHC, tem sido assim com o par Lula-Kirchner. E será assim até o final dos tempos.

E é batata. Tão logo os argentinos põem o bloco na rua, um coral afinado no Brasil levanta a voz. Dizem que é preciso endurecer, retaliar, romper com a Argentina, abandonar a União Aduaneira (modelo pelo qual o Mercosul se comporta como um só país para negociar com outros países ou blocos).

É o que está acontecendo agora. E, quando há um presidente ranheta como Kirchner do outro lado (no fundo eles sempre nos parecem ranhetas), a situação fica ainda mais complicada e difícil de compreender.

Mas por que mesmo grita o governo argentino neste momento? Por um punhado de geladeiras e fogões? Não só isso. O fato é que o Brasil, que sempre manteve a associação com seu parceiro do sul na base de um déficit comercial (comprava mais da Argentina do que vendia ao país), agora apresenta forte superávit na relação com o vizinho. É disso que reclamam os argentinos. E eu acrescentaria: com razão.

De cada US$ 5 produzidos no Mercosul, quase US$ 4 são feitos no Brasil. O padrão histórico da associação de interesses econômicos nacionais tem sido a nação hegemônica exercer o papel de núcleo da demanda por mercadorias de seus vizinhos mais fracos. Trocando em miúdos: o país mais importante exerce o seu domínio fazendo com que as exportações de seus parceiros contíguos sejam cada vez mais dependentes do seu poder de compra.

Em geral, isso significa que a nação mais importante sustenta déficits no comércio com seus parceiros, que são, muitas vezes, a contra-face de investimentos que as próprias empresas do país central fazem nos parceiros.

Um exemplo da atualidade ilustra bem essa relação de dominância: os EUA mantêm um enorme déficit comercial com a China, país que, por sua vez, é deficitário em relação ao conjunto das outras economias asiáticas. As exportações da Ásia estão concentradas na China, mas as da China não se concentram no mercado asiático, o que dá aos chineses poder de fogo regional; já as exportações chinesas estão concentradas no mercado americano, o que dá aos EUA (cujas exportações não dependem do mercado chinês) ascendência sobre a China e, por extensão, sobre o conjunto da Ásia.

Aqui no nosso cantinho do mundo a relação entre déficit comercial e dependência se inverteu no último ano e meio. As exportações argentinas para o Brasil, no primeiro semestre de 2004, representaram 15% de tudo o que os argentinos vendem para o exterior. Já as vendas brasileiras para o Mercosul (praticamente todas destinadas à Argentina) são 9% de tudo o que o Brasil exporta. Aparentemente se mantém a escrita de que o país mais fraco da relação concentra mais suas exportações no mais forte do que o contrário.

O problema é que o superávit que o Brasil agora apresenta com a Argentina pode não ser apenas circunstancial, fruto do descompasso da recuperação econômica nos dois países --a Argentina mergulhou mais fundo na crise, mas sua recuperação começou já em 2003, quando o Brasil ainda empacava e, portanto, não tinha condições de retomar as compras do vizinho; já a Argentina pôde reacelerar mais cedo o ritmo de compras do Brasil.

Olhando outros dados, alguns argumentam que, já desde 1998, o mercado brasileiro perdeu apetite pelas exportações argentinas, em especial por aquele nicho de produtos mais elaborados que acrescentam mais valor ao que é vendido. Já a Argentina, com a indústria devastada por uma década de sobrevalorização cambial e pela catástrofe financeira do final de 2001 e início de 2002, vê no Brasil, cada vez mais, a principal fonte de compras desses produtos mais nobres.

De fato, enquanto a participação das exportações para o Mercosul no conjunto das vendas externas brasileiras aumentou 75% de 2002 para 2004, a das exportações argentinas para o Brasil no total exportado por aquele país caiu. Então quer dizer, pela lógica exposta, que o Brasil tende a tornar-se dependente da Argentina no que tange a suas exportações? Não parece ser este o caso. Pelo contrário: essa participação crescente do Brasil nas compras argentinas, se continuar, vai ajudar a sufocar a única fonte de dinamismo e de alívio financeiro da economia do vizinho, que é o superávit que a Argentina mantém no conjunto de suas transações com o exterior.

Salvaguardas para geladeiras, fogões e companhia não vão resolver a questão. O que resolve, ou ao menos ajuda, é uma coordenação de fato com o Brasil para discutir regras e recursos para investimentos no plano regional; o que ajudaria muito também seria o presidente Lula dar um calmante para a turma do Palocci e apoiar sem subterfúgios o processo de renegociação da dívida externa argentina.

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A despeito disso, se me permite o leitor um palpite, o Mercosul _ou o estreitamento das relações entre Brasil e Argentina em todos os níveis_ é um processo sem volta; um processo em que está estabelecida desde sempre e cada vez mais a dominância brasileira, que precisa ser exercida com magnanimidade. Ou seja, é preciso engolir como quem saboreia o mais fino caviar as provocações às vezes ofensivas de autoridades do país vizinho e a algazarra dos "durões" locais. E fazer, sim, concessões à Argentina.

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Indicação

Três artigos do número mais recente (o 81) da Revista Brasileira de Comércio Exterior, publicada pela Funcex (www.funcex.com.br), discutem tecnicamente alguns dos principais problemas na relação atual entre Brasil e Argentina.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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