Pensata

Vinicius Mota

25/12/2004

A democracia no laboratório

Como tentar converter um país de maioria muçulmana e de hábitos políticos e culturais autoritários em algo parecido com uma democracia que reconhece os direitos civis e humanos consagrados?

Estão em curso duas respostas e duas experiências históricas absolutamente distintas a esse desafio. Uma é imposição do modelo pela guerra, pelo golpe de Estado desferido por meio de invasão militar e pela repressão sistemática de uma minoria religiosa. É o modo americano de lidar com o Iraque.

A outra é a oferta de bons negócios e farta e duradoura ajuda financeira em troca de concessões no campo dos direitos e da progressiva desmilitarização do país-alvo. É o modo de a União Européia lidar com a Turquia.

Os americanos fizeram a sua escolha. Nem se pode dizer, sem uma alta dose de hipocrisia, que o seu objetivo era o de implantar uma democracia no Iraque.

Mas, ferido de morte o argumento inicial da ameaça que Saddam Hussein representaria ao mundo --com suas armas de destruição em massa e sua capacidade de fazer o mundo desintegrar-se num piscar de olhos (cascata cristalina, mas que não soou como tal diante dos olhos crédulos da opinião pública e da grande imprensa norte-americana durante um bom tempo)--, só restou aos falcões de Bush fincar pé na idéia de que o que querem mesmo é libertar o povo iraquiano da opressão e da ditadura. De todo modo, feito o estrago, eles têm de lidar com a questão.

Não é preciso ser gênio para imputar à iniciativa americana alta probabilidade de malogro. Primeiro puseram tudo abaixo, tanto em termos físicos como institucionais. Agora têm de começar tudo do zero: da polícia aos funcionários eleitorais. Sem falar da nova classe empresarial imposta ao Iraque, feita de beneficiários escolhidos pelo governo americano. Ou seja: a democracia iraquiana poderá autogovernar-se desde que não bula com a segurança e os negócios.




Um parêntese. Engraçado como os americanos, ao castigarem a minoria sunita iraquiana, entregam de mão beijada o poder político do país a líderes xiitas mais do que conectados com a ditadura teocrática iraniana, considerada, esta desde o final dos anos 1970, considerada pária por Washington. É o militarismo americano garantindo o emprego dos futuros marines e os vultosos lucros da indústria armamentista. Um clássico, enfim.




O outro experimentalismo histórico em curso é a ação da União Européia de aceitar o diálogo com a Turquia para que este país, de maioria muçulmana, se integre ao bloco num horizonte largo de tempo.

Diferentemente do Iraque sob Saddam, a Turquia não é uma ditadura. Está, na prática, bem mais integrada aos valores ditos ocidentais do que a maioria dos países árabes. E, embora de maioria muçulmana, a Turquia não é um país árabe.

Ainda assim, o regime turco é duríssimo sob certos aspectos. A minoria curda do país tem historicamente sofrido dura repressão; as mulheres são na prática uma subcategoria de cidadão; tipologias criminais ancestrais como certa proteção aos chamados crimes de honra (assassinatos para limpar o nome da família) ainda vigoram; as prisões turcas são antros de maus-tratos; os generais têm ainda grande poder no país, que mantém cerca de 30 mil soldados na ilha de Chipre, a qual invadiu nos anos 70 e se recusa a reconhecer o governo local, de maioria grega.

Pois a UE colocou tudo isso na balança. Pressionou a Turquia e conseguiu que ela estabelecesse, para vigorar a partir de abril do ano que vem, um Código Penal mais moderno --com ampliação dos direitos das mulheres e do direito de expressão--, que desistisse de criminalizar o adultério como queria a linha dura do partido governante (que é religioso), que assumisse mais compromissos sobre respeito de direitos em suas prisões.

O passo que decidiu o acordo inicial com a UE foi o compromisso de solucionar pacificamente a questão de Chipre. E, como a adesão, se vier, só daqui a dez anos, a pressão européia --que sabiamente estabeleceu etapas para que a Turquia conquiste o status de país pronto a associar-se ao bloco-- vai continuar.

Vai dar certo? Só o tempo dirá. Mas tem muito mais chances de sucesso do que o método de destruição criativa da democracia proposto pelos falcões de Bush.


Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca