Pensata

Vinicius Mota

02/01/2005

O mar em cólera

A ciência explica o que aconteceu na manhã de domingo, 26 de dezembro, no Sudeste Asiático. Um poderoso abalo sísmico no fundo do oceano Índico, perto de Sumatra, gerou uma corrente de ondas gigantes que devastaram a faixa litorânea de países como Índonésia, Tailândia, Índia e Sri Lanka. A morte de mais de 100 mil pessoas foi a conseqüência de um fenômeno geológico recorrente ao longo dos bilhões de anos da história natural do planeta. É errado, desse ponto de vista, qualificar de tragédia o que aconteceu ou dizer que o mar se revoltou, que entrou em fúria, que se vingou da humanidade. O oceano é coisa. E, como coisa, não leva nada para o lado pessoal, não tem emoções, não se revolta, não pode ser personagem de tragédia, não se vinga. No caso, agiu apenas como meio de dispersão da energia liberada pelo atrito entre placas tectônicas.

Pobres cientistas. Pobres defensores da objetividade. Tão logo se soube da catástrofe, as associações impróprias --"tragédia na Ásia"; "tragédia no Índico"; "mar em fúria" e tantas outra-- já circulavam à solta pelo mundo.

Desafiar as águas violentas do mar, vencê-las pela força do nado ou pelo engenho da navegação é tema primordial da imaginação humana. Um oceano de narrativas, em todos os tempos, trata desse desejo de ser mais forte, mais violento que o mar, de domar pela astúcia a tempestuosa água salgada. Nessa contenda, ao mar foram atribuídos dons demasiado humanos como o da força bruta, o da cólera, o da crueldade, o da traição (mar traiçoeiro).

O historiador grego Heródoto, que viveu no século 5° antes de Cristo, dá notícia dessa relação humanizada do homem com o mar. Ele conta, no 7° livro de suas "Histórias", o episódio da revolta do lendário rei persa Xerxes contra o mar, que ousou destruir uma ponte que havia ordenado erguer entre as cidades de Sesto e Abido, separadas pelo Helesponto (nome que os antigos davam ao estreito de Dardanelos, que separa a Ásia Menor da Europa e fica hoje em território turco).

Heródoto narra: "Xerxes, indignado, tomado de cólera, mandou dar trezentas chicotadas no Helesponto e fez jogar ali um par de cepos [troncos com buracos em que se prendem os pés de prisioneiros]. Ouvi dizer que enviou também, com os executores dessa ordem, algumas pessoas para marcar as águas com um ferro em brasa. Mas é certo ter ele ordenado que, ao chicoteá-las, lhes fosse pronunciado este discurso bárbaro e insensato: 'Onda amarga, teu senhor te castiga porque o ofendeste sem que ele desse motivo para isso. O rei Xerxes te atravessará por bem ou por mal. É com razão que ninguém te oferece sacrifícios, já que és um rio enganador e salgado'".

Na Turquia do início do século 19, conta o pesquisador de folclore francês Pierre Saintyves, era comum um cádi (juiz muçulmano) ordenar, mediante demanda de moradores incomodados com as devastações provocadas pelas cheias do Ínaco, que o rio se mantivesse em seu curso habitual. "Mas, se as águas aumentam, então o cádi, acompanhado dos habitantes, desce até o local para intimar o rio a retirar-se. Lançam-lhe uma cópia da intimação do juiz, o povo chama [o rio] de usurpador, de devastador, atira-lhe pedras". De tão humanas, as águas se tornam até sujeito de direito.

O escritor francês Achille Millien (1838-1927) descreve, em "Cantos Populares da Grécia e da Sérvia", um ritual em que mulheres de marujos desaparecidos flagelam a superfície das ondas e cantam: "Ó mar, ó mar cruel de águas escumantes. Onde estão nossos maridos? Onde estão nossos bem-amados?

Se estamos falando do desejo de dominar tendo o mar bravio como adversário, então o Fausto de Goethe não pode ficar de fora. No segundo livro de Fausto, o herói quer manifestar seu poder sobre o mar, quer, com o simples olhar, empurrar sua margem para longe: "Repelir da margem o mar imperioso, estreitar os limites da dura extensão e empurrá-la para bem longe sobre si mesma... Eis meu desejo".

Mas as bravatas, como vimos mais uma vez, e de forma categórica, no último domingo de 2004, não têm servido para evitar que a fúria das águas prevaleça sobre os homens sempre que for de sua vontade. A morte em massa, os corpos aos montes que o mar devolveu às praias como se fossem sargaços, afoga qualquer narrativa, humilha qualquer Fausto que diga: "Por mais violenta que seja, a onda se curva diante de qualquer colina". E põe fim à poesia.




INDICAÇÃO

O roteiro deste artigo e as traduções nele presentes foram baseados na sublime obra de Gaston Bachelard (1884-1962) "A Água e os Sonhos" (ed. Martins Fontes; Antonio de Padua Danesi, tradutor). Para quem quiser aprofundar-se no tema, proponho a leitura do capítulo 3, "O complexo de Caronte. O complexo de Ofélia" e do 8, "A água violenta".
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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