Pensata

João Pereira Coutinho

02/05/2005

Anjos e demônios

19 de abril

ROMA
- Acompanho a eleição do Papa pela TV. Fumo branco. Minutos antes do anúncio oficial, penso apenas: "Quanto tempo ainda falta para Ratzinger aparecer na varanda?"

Não é blague, não: é certeza. Absoluta certeza. Dito e feito: Ratzinger é eleito papa. Faz sentido: alguém que bebeu do Concílio Vaticano 2º e, depois, confrontado com os excessos da década de 1960, resolveu repensar a liberdade e seus limites. E, como Karol Wojtyla, um cristão que conheceu --na pele-- o totalitarismo nazista do século 20. Espero apenas pelo nome: aposto em Gregório ou Clemente. Erro meu. Será Bento. Bento 16. Escolha inteligente e, mais ainda, inteligentemente política.

Comentadores de todo o tipo lembram os dois últimos Bentos que estiveram na cadeira pontifical. Bento 14 (1675 - 1758), eleito no mais longo conclave moderno (durou 6 meses), autor da primeira encíclica papal, admirado por Montesquieu e interlocutor de Voltaire, que lhe dedicou tragédia célebre, "Mahomet". Sim, serve: Bento 14, como Ratzinger, foi intelectual brilhante. E, atenção, Brasil, alguém que se envolveu profundamente na defesa dos índios às mãos dos portugueses. Várias cartas de Bento 14 dirigidas às autoridades de Lisboa procuravam sublinhar a humanidade dos nativos e condenar a severidade dos colonizadores.

E Bento 15 também se ajusta. Bento 15, papa durante a Primeira Guerra, foi relevante na tentativa --falhada, claro-- de gerar consensos entre as potências beligerantes. Na Primeira Guerra, as nações da Europa marcharam para o campo de batalha com uma alegria eufórica. A guerra seria uma purificação civilizacional, dizia-se. "Vem e morre!", gritava Rupert Brooke, com a excitação própria de um louco. Impossível travar esse desejo de morte. Deu no que deu.

Aceito que a escolha do nome seja homenagem a legados passados: ao intelecto de Bento 14 e ao espírito "pacifista" de Bento 15. Mas meu primeiro pensamento vai para S. Bento, patrono da Europa e, como Ratzinger, alguém com consciência aguda de que a civilização ocidental --e europeia-- atravessa crise profunda, rodeada por bárbaros.

No século VI, Bento lançou as bases do monaquismo porque a desagregação do Império Romano mergulhara o continente na incerteza material e moral. A Igreja era, por assim dizer, um bunker de religião e fé, disposta a cristianizar os rústicos, salvando a herança cristã.

Ratzinger me parece herdeiro desta visão: uma visão de resistência e combate. Claro: não temos bárbaros, no sentido medieval do termo. Mas, para Ratzinger, temos bárbaros no sentido epistemológico, relativista: a incapacidade para distinguir valores morais objetivos é o problema essencial da pós-modernidade. Contra essa deriva, Ratzinger propõe um regresso às certezas "racionais" da modernidade. Ironia: Voltaire ia gostar.

Aliás, esta posição não é apenas comum à Igreja Católica de hoje. O desafio da pós-modernidade encontrou respostas duras em filósofos seculares (e até ateus) que procuraram regressar a uma ideia perdida (e clássica) de virtude. Como Leo Strauss (1899 - 1973), que influenciou profundamente a escola de Chicago (ou seja, Allan Bloom e todos aqueles que, muito impropriamente, a mídia gosta de rotular como "neoconservadores"). E também Alasdair MacIntyre, um poderoso filósofo vivo, que em "After Virtue" desenha um cenário de desolação moral que Ratzinger poderia, perfeitamente, assinar por baixo.

21 de abril

LISBOA
- Saio de casa para ver "A Queda", filme sobre as últimas horas de Hitler. A obra de Oliver Hirschbiegel, tolerável e com meios de produção próximos de Hollywood (apesar de defeitos na coreografia e na montagem), provocou discussões mil na Europa. Motivos? Um só: Hitler, o demente Hitler, aparece "humanizado" por ator suíço, Bruno Ganz, que captou tiques e sotaque do velho ditador na perfeição. O filme se inspira nas memórias da secretária de Hitler (coisa fraca, que li com fastio) e no trabalho de Joachim Fest, "Inside Hitler's Bunker". Wim Wenders, que há vários anos não acerta um único filme (desde, pelo menos, "Paris,Texas", 1984) criticou a obra. É impossível saber quem são os maus, disse Wim. Tudo demasiado neutral, com Hitler comendo à mesa (com faca e garfo) e beijando Eva Braun (um tesão de atriz e, consta, um tesão de mulher). Na cabeça infantil de Wim Wenders, seria necessário que Hitler aparecesse chifrudo e espumando raiva. De preferência, no meio de labaredas infernais.

As pessoas deviam ter vergonha em dizer certas coisas. Mas entendo as origens da inquietação --uma inquietação repetida ad nauseum por intelectuais que gostam de dissertar sobre o óbvio. Como George Steiner, que continua sem entender como é possível ouvir Mozart ao jantar e gasear judeus ao pequeno-almoço.

Por amor de Deus, George: não existe nenhuma correlação, positiva ou negativa, entre conhecimento e humanidade. Ouvir Mozart não impede ninguém de se entregar a práticas de extermínio e crueldade. Às vezes penso o contrário: a cultura é uma forma de desumanização pela estética, e Hitler é exemplo maior do que digo --alguém que destroçou a fronteira necessária entre beleza e moral, elegendo a Pátria como tela em branco onde é possível criar a partir do nada. A este respeito, aconselho "Hitler and the Power of Aesthetics", de Frederic Spotts.

Mas tem mais: qualquer tentativa de "desumanizar" Hitler, de olhar para ele como criatura sobre-humana e necessariamente demoníaca, é apenas uma forma de desculpar seu comportamento. Um demente não tem, por definição, culpa alguma de seus atos. Só existe culpa quando existe livre arbítrio. E só existe livre arbítrio quando falamos de seres humanos no sentido moral. Hitler era parte da espécie. Da nossa espécie. E quando olhamos para a história da Alemanha no século XX, não encontramos um demente no sentido clínico do termo. Encontramos um ser humano racional que, muito racionalmente, se lançou na conquista do poder e na destruição da Europa.

Um pouco de história: em 1919, em Versalhes, a Alemanha estava de joelhos. A guerra de 1914-1918 trouxe inflação, desemprego e tensão social crescente, que liquidou a República de Weimar. Hitler começou por ser produto deste caldo --um artista falhado em Munique, que mamou forte no anti-semitismo que corria célere. Basta ler "Mein Kampf" (1923), seu tratado pessoal, escrito na prisão depois de tentativa de golpe de Estado em 1921, para ver uma cabeça perfeitamente racional em funcionamento. Como recuperar a grandeza da Alemanha, perguntava o jovem Adolf. Resposta: só por via totalitária, ou seja, subordinando a nação ao culto do Estado e do chefe e eliminando a "praga" judaica. O resto, como se diz por aí, é história: com a crise de 1929, a Alemanha bateu no fundo. Em três anos, o Partido Nazista passou de força marginal para força política mais votada. E Hitler, um demagogo que apaixonava massas carentes de liderança forte, faturou com sua política agressiva de imperialismo, nostalgia patriótica e eliminação rácica.

Não há nada mais humano do que isto: o desejo de humilhar o próximo; a atração pela violência; a megalomania criminosa que atravessa a história dos homens.

Sessenta anos depois, ainda bem que a Alemanha tem coragem para mostrar seu ditador sem desculpas fantasistas. A única forma de não destruir o presente passa por isto: pela não falsificação do passado.

22 de abril

MOSCOVO
- Tudo ao contrário dos russos: Vladimir Putin afirma, sem um pingo de ironia, que o fim da União Soviética foi uma tragédia nacional e mundial. O fim da União Soviética, lembremos, enterrou uma ideologia criminosa que ceifou vinte milhões de vidas (mínimo).

Putin não vê vidas, só números. E não é caso único: leio agora matéria no "Daily Telegraph", um dos poucos jornais legíveis desde lado do Atlântico, sobre o aumento de movimentos revivalistas em torno de Stálin, considerado por uma parte significativa dos russos como herói de guerra e salvador nacional. Curioso: os russos esquecem, ou propositadamente ignoram, que antes de Stálin entrar na guerra contra Hitler, havia um pacto entre os dois: o pacto germano-soviético de não agressão assinado em 1939. Mas os russos não estão interessados no pacto. Apenas no pós-pacto e na grandeza de Stálin. Isto tem explicação?

Talvez. Para começar, a Rússia é um caso à parte. Um país que passou ao lado da modernidade --sem Renascimento, Reforma, Iluminismo, Contra-Iluminismo-- e que surge nos inícios do século 20 com suas estruturas feudais praticamente intatas. Uma agricultura arcaica. Um processo industrial iniciado nas últimas décadas do século 19 mas limitado a suas cidades imperiais (como Moscovo ou Sampetersburgo).

Não admira que, para uma parte significativa da população atual, defraudada pelas condições precárias da vida presente (capitalismo é duro, camaradas), Lenin ou Stálin tenham sido figuras centrais na afirmação do orgulho nacional. Se olharmos para a frieza dos números, existe alguma verdade nesta sinistra nostalgia: em 1940, a União Soviética era, na verdade, a terceira potência industrial do mundo, atrás dos Estados Unidos e da Alemanha. Mas o preço? Qual foi o preço desta grandeza?

Ah, ninguém lembra o preço. A nostalgia dos russos não está a venda. Ela existe. Persiste. E arrepia qualquer um.

28 de abril

LISBOA -
Nem tudo são más notícias: visito meu correio eletrônico e um amigo paulistano avisa que Millôr Fernandes tem publicação nova no Brasil: "Pif-Paf", caixa com as oito edições da mítica revista que o regime calou em 1964. Inveja: dos brasileiros (em geral) e dos brasileiros que nunca leram Millôr (em particular).

Não sou inocente em meus entusiasmos. Há dois anos, juntamente com o editor português Vasco Rosa, organizei em Portugal a primeira edição de textos de Millôr. O livro se chama, precisamente, "Pif-Paf" --porque "Pif-Paf" era o nome da página que Millôr Fernandes, entre 1964 e 1974, criou para o jornal português "Diário Popular". Imagino o que seriam esses textos no país fechado e atrasado da década de 1960, sob ditadura de Salazar. Aliás, consta que Salazar gostava de ler Millôr. "Este tipo tem piada", dizia o nosso António, "só é pena escrever tão mal".

Pobre Salazar. Millôr não só escreve divinamente como pensa divinamente. Nesses meses que passei com a prosa de Millôr, colhendo histórias, hai-kais, poeminhas, "fábulas fabulosas" e frases --sim, as frases!, as frases!-- entendi como existe em tudo aquilo --em todo aquele caos-- um fio condutor, diria até filosófico, mas o termo me parece pomposo demais para quem abomina o excesso de nosso teatro existencial.

Millôr é imbatível na observação de nossos vícios privados e virtudes públicas. Um cético, sim, temperado por otimismo brando. E, politicamente, um saudável anarquista: mas um anarquista aristocrata, no sentido próprio do termo --alguém que conhece as limitações da natureza humana e, apesar de tudo, não desiste completamente dos humanos. O Inferno são os outros? Fato, fato. Mas, como diria Millôr, o Paraíso também.

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  • Erramos: Anjos e demônios
    João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

    E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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