Pensata

João Pereira Coutinho

16/05/2005

Praias paradisíacas

1 de maio

LISBOA - Aqui há uns anos, corria maio, terminei uma relação promissora com uma menina bonitinha por causa de uma expressão casual. As férias desenhavam-se no horizonte. E ela, com a ingenuidade própria dos anjos, sugeriu agosto num sítio qualquer onde existiam "águas cristalinas e praias paradisíacas".

Como é que é? A expressão, o problema está na expressão. Sim, detesto praia, porque praia é a encarnação terrena do inferno: povo, vendedores ambulantes, crianças gritando, jogando, correndo. Bichos marinhos. Afogamentos. E nudistas, sobretudo senhores de cinquenta ou sessenta anos que gostam de ostentar orgulhosamente os seus pênis mirrados. O açougue em forma humana. E toda a gente fazendo de conta que é natural: "não olha, querido, é apenas um pênis passeando pela brisa da manhã". Bom, natural é: como terremotos, furacões e outras desgraças.

Mas aquilo que me entristeceu foi a expressão. Dizer "águas cristalinas" é muito mau. Dizer "praias paradisíacas" é o fim: a corrupção da mente pela indústria do turismo.

Claro que não me livrei do ordálio anual. Quando maio aterra entre nós, as férias começam a sua dança macabra. O destino. A marcação no destino. A escolha criteriosa do destino. A escolha de acompanhantes. Minha vontade é desistir logo. E eu desisto. Marco férias e, na véspera da partida, dou entrada (fictícia) no hospital. Já fui operado de apendicite, sei lá, umas três ou quatro vezes. Uma namorada, certo dia, perguntou: "Você não retirou esse apêndice o ano passado?" Disse que sim. "Mas ele cresce, meu amor". Também retirei pedra do rim, tive princípio de infarto ("coitado, é tão jovem, etc., etc.").

Outras vezes arrumo um compromisso profissional (fictício) que me obriga a ficar. Insulto patrões imaginários. Choro de raiva. Prometo passeatas contra a globalização. "Porto Alegre, me espere!" Vou ao aeroporto, despeço-me dos amigos com muita dor, aceno como um cachorrinho sem dono, vejo o avião partir. E depois regresso, levitando, mais feliz que Gene Kelly dançando sob a chuva.

Durante duas semanas, a minha felicidade é total. O prédio está silencioso e habitável. A cidade, idem. O telefone não toca. É possível ler sem limites. Os restaurantes servem bem, os cinemas não estão lotados. Podemos dirigir. Podemos ser dirigidos. E, com muita sorte, encontramos alguém que também ficou: existe nas pessoas que ficam uma nobreza que sempre me encantou. Então as noites são minhas. E longas. E íntimas. E apaixonadas.

O problema é que as férias não são normais. E as pessoas não se comportam como gente normal: comportam-se como animais em cativeiro, subitamente libertas de sua jaula habitual. Por isso correm como loucas e se comportam como loucas, exibindo uma alegria artificial. As pessoas, em férias, fazem um esforço tão delirante para "estar em férias" que muitas terminam exaustas. E em depressão. Conheci casos. E para quê?

Fiquem. Em casa. Eu vou ficar. Chega de mentiras. Tive duas propostas este ano. A "praia paradisíaca" (um clássico) e uma viagem longa a um "país espiritual" (algures no Oriente). Confessei tudo, como um criminoso arrependido. As pessoas ouvem a minha confissão e ficam incrédulas: como é possível alguém recusar filas intermináveis no aeroporto, viagens de quinze horas com um bebê que vomita leite o tempo todo, gastronomia local (tradução: disenteria) e meninos de hotel subnutridos (e explorados) que não sabem preparar um dry martini como devem? Mas depois se habituam. Algumas já experimentaram este supremo risco --não ir de férias. E quando setembro chega e o trabalho regressa, todas perguntam, com orgásmica serenidade: porque motivo andei fingindo todo este tempo?




5 de maio

LONDRES - Pergunta: "Quantos ingleses são necessários para mudar uma lâmpada?"

Resposta: "Mudar?"

Esta piada diz tudo sobre as eleições britânicas e desmente algumas matérias que foram publicadas a respeito. Blair ganhou novamente. E alguns colunistas, aqui na Europa, trataram de perguntar como é possível. Sim, como é possível Blair ganhar a terceira eleição consecutiva (fato histórico para os trabalhistas) depois do Iraque, do apoio a Bush e das alegadas mentiras ao povo britânico?

Bom, entre bocejos vários, a pergunta responde-se a ela própria: o povo britânico não quer saber do Iraque, de Bush e das alegadas mentiras de Blair para nada. Motivo simples e até compreensível: quando existe dinheiro no bolso, o mundo é um distante rumor para os nossos ouvidos saciados. E, meu Deus, se existe dinheiro no bolso! Regressei de Londres há pouco tempo e fiquei pasmado com a vitalidade da cidade. O governo Blair conseguiu uma economia vibrante porque, no essencial, respeitou a cartilha que Margaret Thatcher apresentou em 1979, quando a Inglaterra estava de rastos pela ação criminosa e paralisante dos sindicatos.

Que cartilha? Memórias várias gostam de contar o episódio: Margaret, a
caminho de Downing Street, empunhando o livro clássico de Hayek, "O Caminho da Servidão". "Isto é aquilo em que acreditamos", dizia a "Dama de Ferro" nas reuniões do partido, jogando o livro sobre a mesa. Aplausos, aplausos.

Friedrich Hayek (1899 - 1992), economista austríaco com longa carreira nos Estados Unidos, escreveu "O Caminho da Servidão" em 1944. Mensagem simples: se as nações democráticas têm a suprema tentação de dirigir a economia do país, o caminho só pode ser um --o totalitarismo, como aconteceu na Alemanha e em Moscovo. Hayek preocupava-se com o fato de seres humanos livres estarem dispostos a alienar parte de sua liberdade para obterem alguma segurança em troca. Hayek lembrou a mensagem central de Benjamin Franklin, séculos antes: quem troca liberdade essencial por segurança temporária, não merece nem liberdade, nem segurança.

Blair não alterou a mensagem de Thatcher. A "terceira via", de que toda a gente fala, não passou de operação estética para calar sindicatos e a ala esquerda do partido. Tirando a proibição de caçar raposas (uma medida idiota, que ninguém obedece, muito menos a Inglaterra rural que continua caçando à vontade) e uma reforma desastrada da Câmara dos Lordes (um problema constitucional que não incomoda os leigos), Blair apostou numa economia crescentemente descentralizada, num ensino elitista (e bem pago) e num serviço nacional de saúde liberto dos constrangimentos estatistas que enfiaram os hospitais ingleses na sarjeta.

Isto tem prazo de validade? Provavelmente. E esta probabilidade desmente a segunda idéia que a imprensa veiculou: a morte dos conservadores britânicos. O problema dos conservadores é um problema temporário e espacial. Com Blair deslocando-se para a direita, os conservadores perderam espaço natural. Li os programas dos dois partidos e, honestamente, não encontrei diferenças. Minto: os conservadores prometiam luta pesada contra imigrantes e outras minorias (como ciganos). Mensagem errada, claro, que afugentou votos e apresentou o líder Michael Howard como racista da velha guarda.

Sem espaço ideológico, resta aos conservadores esperar. O futuro pode ser
risonho: duvido que Blair cumpra o seu mandato até ao fim, sobretudo com uma maioria reduzida no Parlamento. Mais: com a provável derrota no referendo sobre a constituição europeia (em França a vitória do "sim" não está garantida; em Inglaterra, o euroceticismo é endêmico), a sentença será fatal. Além disso, a influência de Gordon Brown, ministro das Finanças e grande responsável pela economia interna, é crescente dentro do partido. Se a economia começar a declinar nos próximos tempos --cenário provável: o dinheiro não é eterno --Brown irá necessariamente guinar à esquerda, para contentar sindicatos e a ala radical trabalhista. Os conservadores terão o seu momento.

Porque esse é o supremo segredo do eleitorado britânico. Mudar? Só quando a situação exige mudança. Aconteceu em 1979, quando Thatcher inaugurou o seu reinado. Aconteceu em 1997, quando Blair inaugurou o seu. Pode acontecer em 2009. Quem viver, verá.




8 de maio

MOSCOVO - A Segunda Guerra terminou há sessenta anos e um leitor escreve com correção. No meu último texto, disse que os russos continuavam com as suas nostalgias em relação a Stálin, grande defensor da União Soviética, esquecendo o pacto germano-soviético de 1939. Na opinião do leitor, eu ignorei o sacrifício humano dos russos na luta contra Hitler.

Com a devida vênia, não esqueço nem ignoro. O sacrifício russo foi monstruoso --27 milhões de vidas-- e sem a luta no Leste, dificilmente a guerra teria sido ganha. Aliás, não apenas o sacrifício russo: 20 milhões de chineses sustentaram a ofensiva japonesa e, coitados, ninguém fala dessa gente esmagada. O problema é saber se a luta dos russos iliba a qualidade moral dos seus próceres. Interessa saber, no fundo, se as perdas humanas em Stalingrado fazem esquecer o acordo Molotov-Ribbentrop que, assinado em 1939, permitiu duas coisas. Primeiro, caminho livre para Hitler na Polónia (a invasão que atirou a Europa para o abismo). E, segundo, a ocupação soviética dos países bálticos --uma ocupação que, nos acordos de Yalta, em 1945, foi simplesmente legitimada e que durou meio século de incontáveis sofrimentos. Ao contrário do que disse Bush, Yalta não atraiçoou coisa nenhuma porque a suprema traição começou em 1939, não em 1945.

Percebo que Putin esteja interessado em mostrar ao mundo a qualidade moral da URSS na luta contra Hitler --a Grande Guerra Patriótica. Putin é KGB "vintage". Mas convém lembrar, num tempo sem memória, que se Hitler não tivesse cometido o erro fatal de invadir a União Soviética em 1941 (Hitler não leu as campanhas napoleónicas) Stálin continuaria no seu canto, fazendo as suas purgas perante o silêncio de um mundo em guerra. Como lembrou recentemente o historiador Niall Ferguson, entre 1942 e 1945, só para termos um exemplo da grandeza de Stálin, 7 milhões de russos continuaram a ser assassinados por Moscovo e seu gulag. Business as usual.




13 de maio

ROMA - Aconteceu em Itália: um homem foi levado a tribunal porque, alegadamente, escondeu sua impotência da mulher. Namoraram durante anos e, na noite de núpcias, a dolorosa confissão: querida, vamos jogar cartas?

A esposa sentiu-se enganada --como mulher, como noiva e potencialmente como mãe-- e exige compensações monetárias. À primeira vista, faz sentido.

Mas só à primeira vista. É preciso uma segunda. Dito de outra forma: como é possível rir e condenar este homem se nunca vimos uma foto da mulher?
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca