Pensata

João Pereira Coutinho

30/05/2005

De olhos bem fechados

27 de maio

PARIS - Jacques Chirac aparece na televisão francesa e implora aos compatriotas para aprovarem a constituição européia. A constituição é importante para a França e, claro, importante para o futuro da França na Europa. Azar, mon chéri: no momento em que escrevo, 55% dos franceses estão dispostos a recusar o tratado. E, de pesquisa em pesquisa, o ceticismo cresce entre a esquerda e a extrema-esquerda.

Como explicar isto? Como explicar que a França --o país de Schuman e Monnet, os fundadores do clube; de Delors ou Giscard d'Estaing, os pais do euro e da constituição, respectivamente-- estejam dispostos a mostrar uma ingratidão tão cruel? Uma ingratidão que, para alguns sábios, pode enterrar a União e condenar a Europa a um futuro de fracasso?

Bom, a melhor forma de responder a isto é dizer que a ingratidão não começou hoje. Há 13 anos, o tratado de Maastricht --responsável, entre outras coisas, pela moeda única-- foi aprovado por margem mínima. O fenômeno fez correr rios de tinta entre a imprensa europeia. Aliás, continua a fazer correr ainda hoje. O jornalista Daniel Hannan, semanas atrás, lembrava na inglesa "The Spectator" que Maastricht foi recusado pela França continental, e aprovado pelos votos que vieram de fora: votos da emigração e, sobretudo, da Guiana Francesa e de Guadalupe, que salvaram o tratado no final. Tudo pode acontecer. Mas, aconteça o que acontecer, a divisão da França --e a mais que provável rejeição da Holanda, três dias depois-- mostra bem como o "projeto europeu", sonhado há sessenta anos, está cansado e esgotado. E isso é perceptível se entendermos como se chegou até aqui.

Numa palavra? Guerra. A necessidade de uma Europa unida nasceu da guerra --do medo da guerra. Robert Schuman entendeu o fato e, em 1950, ao lançar as bases da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (a semente da atual União), o ministro francês referiu o problema: desde 1914 --ou, para sermos mais exatos, desde a guerra franco-prussiana de 1870-- que França e Alemanha tinham o hábito desagradável de mergulhar a Europa em repetidos massacres. Como evitar isto, perguntavam os herdeiros de 1945? Resposta: com dinheiro. Era necessário que franceses e alemães tivessem interesses comuns num mesmo espaço de arbitragem comum. Porque interesses comuns não geram guerras comuns.

Existe alguma verdade nesta proposição: a Europa não repete Verdun há várias décadas (um fato único na história, pelo qual se agradece). Mas esta verdade esconde a outra verdade: a paz da Europa foi, no essencial, uma "pax americana", só possível pelas tropas aliadas no continente, com mísseis dirigidos para Leste. Quando a França, hoje, deseja um super-estado para contrabalançar o peso do "Império" americano, eu pergunto o que teria sido da França --e da Europa-- se o "Império" tivesse ido embora em 1945.

Por outro lado, de que serve a paz quando não existe emprego e o modelo social europeu, nascido depois do conflito, dá sinais evidentes de esgotamento? Fato: economias pequenas, como a portuguesa, beneficiaram grandemente com a entrada no clube. Portugal está irreconhecível e os fundos de Bruxelas, que foram gastos e, em muitos casos, desperdiçados, ajudaram a levantar um país saído da revolução e a consolidar a democracia interna. Mas alguém tem de pagar a conta. E a conta é paga, sobretudo, pela Alemanha ou pela França, que apresentam economias estagnadas e desemprego farenheit. Que futuro espera uma Europa deprimida, envelhecida e socialmente pesada para os cofres dos estados?

É neste clima de medo e frustração que os franceses se confrontam com a Europa. A constituição é um detalhe e, na maioria dos casos, um detalhe ignorado. Ninguém leu a constituição. Ninguém lê um documento longo e, para todos os efeitos, longamente ilegível, que merece ser recusado por motivos vários. A ideia era fazer um tratado capaz de simplificar --e substituir-- todos os outros tratados? Erro. A constituição, nos termos atuais, é um passo gigantesco na criação de um super-estado europeu, crescentemente centralizado, com toques hilários que ignoram a realidade política do continente. Um exemplo? A criação de um ministro das Relações Exteriores é caso de alienação institucional. Basta lembrar que na recente crise do Iraque, a Europa mostrou as diferentes "europas" que existem no seu seio. Os "europeus" não desejam as mesmas coisas e --oh! supresa-- não olham para o mundo da mesma maneira.

Os franceses podem desprezar a atual classe política. Podem desprezar a ameaça de uma economia "neoliberal", de inspiração anglo-saxónica. Podem até desprezar a entrada da Turquia (um grande erro). Mas, no fundo, eles estão a formular uma questão mais importante: será possível construir uma Europa indiferente às preocupações reais de gente real que existe na realidade? Bastaria olhar para os números das últimas eleições europeias e dissipar todas as dúvidas. Para começar, metade dos europeus simplesmente não vota. E, entre os que votam, cresce uma silenciosa minoria que recusa a União e, pior, deseja simplesmente destruir as conquistas de Schuman e Monnet.

Os plebiscitos sobre a constituição deviam servir para duas coisas: parar e repensar. A Europa de hoje não é mais a Europa de 1950. Em teoria, a constituição exige que todos os países a ratifiquem; nove já o fizeram, alguns nos seus parlamentos (prova definitiva de que não existe igual legitimidade nesta história); mas se algum dos parceiros se recusar a fazê-lo, a constituição vai para o caixote do lixo --onde é o seu lugar. E se não forem os franceses, serão os holandeses; e se não forem os holandeses, serão os tchecos; ou os polacos; ou os ingleses.

Sim, é possível reescrever tudo e torturar os eleitores com perguntas intermináveis, até que o "sim" triunfe (um abuso democrático que, acreditem ou não, é defendido por idiotas de todas as cores partidárias).

Mas também é possível --e mais sensato-- permitir, de uma vez por todas, que a Europa seja livre para decidir o seu destino. E que cada país possa escolher diferentes níveis de integração --econômica, política, até federal-- de acordo com os seus interesses. Uma Europa a várias velocidades não me assusta nem horroriza. O que assusta e horroriza é a tentação burocrática e tecnocrática de enfiar tudo no mesmo saco e seguir em frente de olhos bem fechados. Esta arrogância fatal será, a prazo, o fim da Europa. E, ironia trágica, o regresso da barbárie que a Europa procurou evitar.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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