Pensata

João Pereira Coutinho

13/06/2005

Combates de boxe

31 de maio

LONDRES - Bob Geldof aparece em cena para anunciar o Live 8, megashow a 2 de julho em cinco cidades mundiais, com marcha para a Escócia logo a seguir, onde o G-8 se reúne. Bob Geldof está disposto a salvar África. Mas, perguntam vocês, quem está disposto a salvar África de Bob Geldof? Numa conferência de imprensa puramente imaginária, J.P. Coutinho confronta o famoso "Sir" com duas ou três questões a respeito.

- Olá, Bob. Você está mais magro, rapaz!

- Passo fome, Coutinho. Solidariedade.

- Ótimo. Eu, não. Escuta, Bob: no próximo dia 2 de julho, em cinco cidades mundiais, haverá concertos rock a favor de África. Você consegue explicar qual a relação entre concerto rock e combate à fome?

- Fácil: nós, músicos, não vivemos de ar e vento. Precisamos de comer. Tocar música é a nossa vida e, depois do concerto, haverá sempre discos, vídeos, merchandising. Quando fizemos o primeiro Live Aid, em 1985, Madonna não comia há duas semanas. "Like a virgin", dizia ela. E eu passava os meus dias com fish'n'chips. Uma nojeira.

[suspiros na sala; o cantor Prince murmura: "You sexy motherfucker..."]

- Sim, mas eu a estava a falar da fome da África, não da sua, malandro [risos].

- [risos] Sei, sei, estava a brincar, Coutinho. É preciso despertar consciências para o drama dos países africanos: o Sudão, a Somália, a Albânia, por aí.

- Bom, geografia não é o seu forte. Nem economia, by the way. Nos últimos cinquenta anos, o mundo enfiou 550 bilhões de libras no continente. Cinquenta anos depois, o continente está mais pobre. O que fazer, Bob?

- Só vejo uma solução: duplicar, triplicar, quadruplicar a ajuda. Temos de ajudar mais e eu quero 50 bilhões de libras nos próximos anos!

[gritos na sala: "Eu também quero! Eu também quero!"]

- Entendo, Bob. Mas não será ao contrário? Sobretudo quando, por cada dólar enviado para África, 80 cêntimos terminam na conta bancária dos seus líderes?

- Oitenta cêntimos? Mas isso é um escândalo. Você consegue viver com 80 cêntimos?

- Hmm. Deixa estar. Você falou do Live Aid, que em 1985 pretendia ajudar a Etiópia. Qual a principal lição desse evento?

- Felizmente, aprendi uma coisa muito importante: nunca mais convidar os Dire Straits para nada.

- Eu estava a falar da situação na Etiópia. Você sabia que a fome etíope foi o resultado directo das campanhas militares do general Mengistu, que utilizou a fome como arma de guerra (destruindo colheitas, mercados, vias de comunicação)? E você sabia que foi ao general Mengistu que a ajuda do Live Aid foi entregue? Ou seja: não é um pouco absurdo entregar dinheiro ao principal responsável pela tragédia do seu povo?

- [Bob Geldof, lutando contra o sono] É preciso ajudar, é preciso ajudar...

- Bob, você sabia que alguns dos países mais necessitados no momento --como a Nigéria, a Libéria ou o Congo-- possuem recursos naturais incalculáveis (petróleo, pedras preciosas, minérios) que permitiriam resgatar esses países da pobreza extrema?

- [Bob Geldof roncando]

- Bob, você sabia que, de acordo com a revista "Spectator", em 2003 o presidente Obasanjo, da Nigéria, gastou US$ 347 milhões na construção de um estádio de futebol? Ou seja, o dobro do orçamento nigeriano para a saúde?

- [Sala roncando]

- Bob, qual é a sua resposta a certos investigadores africanos, como Franklin Cudjoe, do Gana, que acusam você e seus amigos rockeiros de não terem o mínimo conhecimento da realidade do continente, de contribuírem para a total impossibilidade dos países africanos terem regimes democráticos e economias desenvolvidas e de apenas se promoverem às custas do sentimentalismo mundial?

[Seguranças entram na sala e arrastam J.P. Coutinho, que insiste]

- Bob, você sabia que, de acordo com notícias recentes na imprensa britânica, essas pulseirinhas que você e todo o mundo usa contra a fome em África foram produzidas na China, por trabalhadores em regime de semi-escravatura, e que...




9 de junho

BARCELONA - Ler é um combate de boxe. Você convida o autor para o ringue. Soa o gongo. Você avança. E começa, linha por linha, a golpear o autor. Ri do autor. Atira as melhores frases dele contra as cordas. Um jab de direita nos personagens. Um uppercut de esquerda contra o humanismo fácil. No final do round, se o autor estiver de pé, ele merece respeito. Não é por acaso que Theodore Dreiser, na sua patética grandiloquência, vai ao tapete ainda no primeiro assalto. John Steinbeck não aguenta um sopro. Vladimir Nabokov, não: Nabokov termina o combate de pé.

E havia tudo para demolir Nabokov. "Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma". Golpe profundo --em nós. Como é bom o sabor do tapete. E como é bom ler Nabokov em colectânea de entrevistas --"Opiniões Fortes" (Assírio & Alvim, 377 págs.) --finalmente publicada em Portugal.

Digo livro de entrevistas mas erro. Entrevista é oralidade, com limitações e vícios. "Opiniões Fortes" é literatura forte. Razão simples: Nabokov escrevia as respostas e revia tudo no final. Os aforismos sucedem-se. E a inteligência do homem --ah, são três horas da madrugada e estou sentado na varanda de um hotel, com um calor dantesco na cidade e o corpo gelado de reverência. O sono abandonou-me. Por uns dias. Room service, sim, por favor.

Conheci Nabokov há muitos anos, já ele estava morto. Mas "Lolita", não. Li depois que "Lolita" não passava de sarcasmo fácil e --o horror! o horror!-- uma crítica à imoralidade da vida americana, com seus motéis de estrada e pedófilos em vampiragem assassina. Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Não conheço romance mais moral. Está tudo em Humbert Humbert, esse homem dramaticamente condenado a amar a morte, só a morte, sempre a morte: ninfetas entre os 9 e os 14 anos que desaparecem rápido --como as borboletas-- e se transformam em amantes precocemente envelhecidas.

No livro, Nabokov confessa que pensou no romance em 1939 ou 1940. Em Paris. Será? Pergunto porque desconfio. E desconfio porque, vejam só, há uns tempos, no "Times Literary Supplement", de Londres, li ensaio longo de Michael Maar que me atirou para uma certa depressão literária. Dizia Maar que, em 1916, um obscuro jornalista alemão (Heinz von Lichberg) escrevera conto sobre um homem de meia-idade que aluga quarto de província e se apaixona por menina pré-púbere. Título da história? "Lolita". Voilá.

Confesso que li o conto, meses depois, no mesmo jornal, em tradução cuidada de Caroline Kunin e --como dizer?-- existem semelhanças, vagas semelhanças na trama. Plágio? Não creio. Mas uma memória distante para Vladimir, talvez, que viveu em Berlim durante quinze anos, entre 1922 e 1937 e, sem grande surpresa, pode ter lido Von Lichberg. A "Lolita" --a segunda "Lolita"-- seria publicada em 1955. O romance, ao contrário do conto, é sublime. Mas esta sombra de ilegitimidade, enfim, estraga o prazer completo.

Discórdias? Várias. Em "Opiniões Fortes", Nabokov reduz a pó Camus (injusto) e considera Kipling, Conan Doyle, Chesterton ou Oscar Wilde autores "juvenis". Bom, talvez sejam, mas não abro mão da minha imaturidade.

E concórdias? Idem. Sobre Freud: "uma aplicação diária de mitos gregos nas partes íntimas" (clap, clap, clap: ovação). Questionado sobre as piores coisas que os homens fazem: "Cheirar mal, fazer batota, torturar". Sobre as melhores: "Ser amável, ser orgulhoso, não ter medo".

Pergunta final: "Qual é a sua posição no mundo das letras?"

Resposta final: "É linda a vista aqui de cima" (clap, clap, clap --e imagino logo vários leitores, de dedo eriçado e voz indignada, disparando um "ai, como é arrogante esse Nabuco, Deus nos livre, é preciso alguma humildade, bla, bla, bla").




P.S. - Faço uma pausa em "Opiniões Fortes" para tomar café suplementar ("Pode deixar sobre a cama, obrigado"). E confesso: adoro estatísticas. Elas são a medida da nossa barbárie. Aqui há uns tempos, sei lá onde, li que entre 1945 e 1955 o livro mais vendido em Inglaterra era a tradução que E.V. Rieu fez da "Odisseia". Hoje, a lista apresenta Dan Brown ou J.K. Rowling, duas modestas luminárias que não merecem grandes comentários.

Mas tem mais: segundo o "TLS" desta semana, há cinquenta anos os primeiros números da revista "Playboy" contavam com histórias de Conan Doyle, Balzac, Cervantes, Tchékhov ou Maupassant. Ensaios de Evelyn Waugh (juro, juro). Entrevistas a Nabokov. E pré-publicações de romances de Bellow ("Humboldt's Gift") ou Graham Greene ("Travels with my Aunt"). E hoje? Melhor nem olhar. Ou, então, olhar --mas sem ler.

Belos tempos, esses, em que até a nudez era culta.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca