Pensata

João Pereira Coutinho

27/06/2005

O julgamento de Oriana Fallaci

Em 1989, Salman Rushdie publicava "Os Versos Satânicos". Foi o dilúvio, com Khomeini, líder do Irã, a condenar Rushdie à morte. Parece que o livro de Rushdie ofendia o Profeta e sua imaculada vida íntima. O aiatolá não gostou e Rushdie entrou em hibernação, com segurança 24 horas por dia. É certo que as vendas dos seus livros dispararam para a estratosfera. Mas, pergunto, será que vale a pena?

Depende, depende. Em 1989, talvez: o mundo não tolerou a intolerância dos fanáticos e, por uma vez, falou contra. Rushdie não esteve sozinho: havia, nesses tempos heróicos, uma certa coragem entre os "intelectuais" do Ocidente. A condenação a Rushdie não era apenas uma condenação a Rushdie. Era uma condenação a tutti quanti: uma ameaça a todos aqueles que pensam, escrevem e criam livremente.

Vinte anos depois, e muitas mortes depois, tudo mudou. O silêncio é a medida da nossa cobardia. Hoje, Rushdie seria morto na primeira esquina, com as patrulhas multiculturais em festa, queimando bandeiras dos Estados Unidos e criticando todos aqueles que se entregam à "blasfémia". Ah, que belo conceito: "blasfémia". Estamos nos inícios do século 21 mas as patrulhas multiculturais continuam em pleno século 14, com suas fogueiras laicas, prontas para queimar o infiel em sacrifício público. Pergunto: quem abriu o bico em defesa de Michel Houellebecq, escritor francês recentemente julgado (e absolvido) em tribunal por alegadas ofensas contra o Islão? Reparem: Houellebecq não ofendeu o sr. Silva, casado com a sra. Silva, pai do Zézé e do Martinho. Ele ofendeu o "Islão", todo o "Islão", como se este fosse pessoa singular. E quem defendeu Oriana Fallaci, uma importante jornalista italiana, julgada (e também absolvida) em tribunal pelo livro "A Raiva e o Orgulho", escrito a quente depois dos ataques de 11 de setembro? Precisamente: ninguém.

Nem ontem, nem agora: Fallaci vai regressar a tribunal com processo movido por organização muçulmana. Depois de "A Raiva e o Orgulho", Oriana Fallaci, 75, uma mulher de esquerda que cresceu em família abertamente anti-fascista, resolveu publicar novo livro, "A Força da Razão". Tese de Fallaci: a religião islâmica define-se por uma lógica de submissão e conquista e a Europa, vítima dessa lógica, será a prazo um continente islamizado, com as italianas usando véu e os homens apedrejando as suas mulheres adúlteras. E o pior é que o velho continente não responde ao ataque, diz Oriana. A Europa perdeu a sua força primordial porque esqueceu os seus valores, a sua herança, o seu secular sentido de identidade. Os muçulmanos não conseguiram conquistar a Europa nos últimos mil anos pela força das armas. Nas próximas décadas, eles vão povoar o continente pela força do sexo. Biografia é destino, sim.

Entendam: não sou fã de Fallaci e o tom é francamente desagradável. Fallaci escreve com raiva - e a raiva ofusca o pensamento. Gente que grita não tem lugar na minha estante. Além disso, Fallaci parece esquecer uma evidência: os 20 milhões de árabes que vieram para a Europa, ou a esmagadora maioria deles, procuraram fugir do exacto fanatismo que Oriana condena. Estamos no mesmo barco, cara mia. É a velha história da farinha e do saco.

Acontece, porém, que a questão não é essa. Eu não quero saber se Fallaci está certa ou errada. Eu não quero saber se o tom de Oriana é agradável ou desagradável. Eu não quero saber se a minha sensibilidade pessoal, meus gostos e desgostos, estão em sintonia com os gostos e desgostos de Oriana Fallaci. Eu quero apenas saber se Fallaci tem direito a falar. A criticar. A polemizar. E, por vezes, a ofender. Ou, inversamente, eu quero saber se um escritor (ou um artista) pode e deve ser julgado em tribunal por blasfemar. Quero saber, aliás, se "blasfémia" é crime possível nas sociedades ocidentais onde vivemos.

A pergunta se responde a ela própria: quando olhamos para a cultura ocidental, para séculos e séculos de livros e imagens que ficaram para trás, não encontramos um jardim infantil onde toda a gente vai passear as suas certezas num domingo de manhã. A cultura nem sempre é coisa bonitinha, com imagens bonitinhas e sentimentos bonitinhos, onde ninguém se ofende com ninguém. Ela é feita de golpes e contra-golpes. De críticas e provocações. De insultos. De violências. De abismos. E de blasfémias, sim, de recorrentes blasfémias contra deuses de todas as origens.

Apagar a blasfémia é, tão simplesmente, apagar as linhas anti-semitas de Céline. É apagar todo o "Paraíso Perdido" de Milton e a forma sublime como o poeta se revolta contra Deus, pela boca do diabo. É apagar os quadros de Bacon. É apagar Dante, que enfiou Maomé num dos círculos do Inferno. É apagar Voltaire. É apagar Darwin. É apagar Mencken. É apagar os filmes de Godard. As últimas tentações de Scorsese. É apagar, é apagar, é apagar, como um demente arrependido que raspa da pele as marcas do seu passado.

O julgamento de Fallaci não é um julgamento sobre as alegadas "blasfémias" da autora. É uma pergunta simples, dirigida ao coração do Ocidente: desejamos um mundo de silêncio onde o fanatismo comanda as nossas vidas? Ou preferimos um mundo livre e livremente ofensivo onde, como alguém diria, será sempre possível tentar outra vez, falhar outra vez e falhar melhor?
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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