Pensata

João Pereira Coutinho

25/07/2005

Selvagens e sentimentais

16 de julho

AMSTERDAM - Theo Van Gogh, cineasta holandês, foi brutalmente assassinado em novembro de 2004. Motivo: documentário sobre a forma como o Islã trata as mulheres. O documentário se chamava "Submissão" porque Islã significa "submissão". Um fanático não gostou e resolveu expressar as suas discórdias: com quinze tiros e inevitável degolação numa rua de Amsterdam. Sim, o Islã é uma religião de paz, mas convém não arriscar. Os holandeses abriram a boca de espanto.

Mas o fanático, não. Esta semana, em tribunal, Mohamed Bouyeri (eis o nome) confessou que voltava a fazer tudo de novo. Bastava que o soltassem da jaula e que a oportunidade surgisse (fica tranquilo, Mohamed; a sentença será lida em breve). Momento quente da audiência: o fanático, dirigindo-se para a mãe de Van Gogh, declarando que não sentia arrependimento ou pena. E que as lágrimas da mulher lhe eram indiferentes. Ela, a mãe, não era muçulmana. Pena porquê?

Boa pergunta. Aliás, a Europa se multiplica em perguntas sobre o terrorismo islâmico que resolveu visitá-la. Hoje mesmo, David Rieff, colunista do jornal inglês "The Guardian", avança com a tese do momento. O terrorismo veio para ficar. Não será altura de negociar com esta gente? De procurar negociação política? Ceder um pouco para ganhar um pouco? A ideia é simpática, confesso, mas pressupõe uma coisa simples: pressupõe que, do outro lado, existe alguém disposto a negociar. Theo Van Gogh ainda tentou. Testemunhas afirmam que o pobre desgraçado repetiu incansavelmente "vamos conversar sobre o assunto, vamos conversar sobre o assunto". Não deu certo. Conversar? A conversa pressupõe um mínimo de civilidade. Acreditar que um fanático está disposto a conversar é o mesmo que acreditar na virgindade de Britney Spears. Como diria Gertrude Stein, um otário é um otário é um otário. Mas tudo tem limites.

Tudo, excepto a ingenuidade europeia. Uma ingenuidade que, historicamente falando, até se entende. A Europa vive num mundo pós-iluminista e se confronta com uma ameaça pré-iluminista. Uma ameaça medieval, até. A Europa acredita que a Razão, com maiúscula, resolve qualquer conflito. Os homens são maus porque são ignorantes, como diria Sócrates pela boca de Platão --e, depois dele, todos os herdeiros do Mestre, incluindo os "philosophes" do século 18. Combater o erro é combater o mal, porque o mal procede do erro. A Europa pós-iluminista, e necessariamente secularizada, ignora que a fé do fanático é total e radical: não aceita compromisso. Aceita martírio e destruição, com a promessa de uma conquista: o Ocidente, novamente submetido a uma teocracia totalitária, onde é possível espancar as mulheres que se passeiam na rua de rosto descoberto. Quando o europeu pergunta "como é possível que esta gente mate e se mate?", o europeu fala com outra voz, de um outro mundo. Por isso procura desculpas puramente racionais para explicar o irracional. Desculpas civilizadas.

O europeu acredita que o terrorismo se alimenta da miséria material. Eles matam porque são pobres, como se todos os pobres matassem. O europeu ignora que os cinquenta países mais pobres do mundo, segundo a ONU, não têm atividades terroristas. Óbvio: quando se vive na miséria, um pão é mais importante do que uma bomba. E as biografias dos terroristas apontam para gente de classe média. Gente educada, ocidentalizada. E que abraça o martírio pela interpretação radical de uma religião, normalmente ensinada nas mesquitas, a começar pelas ocidentais, ou nas madrassas, sobretudo do Paquistão.

E por falar em religião, o europeu também nega essa possibilidade. O problema não está na religião islâmica, diz o europeu. Com alguma razão: claro que a vasta maioria dos muçulmanos é gente pacífica, que abomina estes atos. Mas não é prudente ignorar que, ao contrário do cristianismo (ou do judaísmo), a modernidade não passou pelo Islã. Uma ausência de Reforma (ou de Contra-Reforma) impediu que o Islã se adaptasse à modernidade, sobretudo à modernidade política, permitindo a separação do Estado e da Igreja, condição primeira para uma existência humana digna, livre e independente. Os grandes conflitos mundiais atualmente em cena, da Chechênia ao Paquistão, sem esquecer as Filipinas ou o Sudão, têm a marca do Islã. Será por acaso?

19 de julho

LONDRES - Listas e listas e listas. George Steiner, um velho sábio, costuma dizer que as listas são exercícios contra o apagamento. Por isso ele elabora, desde a infância, listas infindáveis de generais e suas batalhas, autores e seus romances, sem esquecer datas históricas, pessoais, monumentais. Entendo o gesto e simpatizo com ele.

Dois exemplos recentes ilustram o que digo. Os ouvintes da Radio 4, conceituada estação inglesa, elegeram os maiores filósofos de todos os tempos em votação nacional. O top 10 inclui, por ordem crescente, Popper, Aristóteles, Sócrates (não escreveu uma frase mas ficou em 8º), Tomás de Aquino, Kant, Platão, Nietzsche e Wittgenstein. Karl Marx ganhou o concurso e David Hume, o meu preferido, ficou em segundo lugar. Porquê David Hume? E porquê Marx?

David Hume é relevante, pessoalmente falando, porque o seu "Tratado da Natureza Humana", que li com prazer infindo, é a mais brilhante defesa de uma natureza humana universal contra as derivas "relativistas" (anacronismo, eu sei) que acabaram por se instalar no tempo presente. Para Hume, a moralidade se baseia naquilo que os homens --todos os homens-- são, tal como os vemos no Brasil, em Portugal ou na China. Isto não é apenas conversa de Academia: quando discutimos os limites do "multiculturalismo", hoje em voga, devemos relembrar David Hume. Sim, diferentes comunidades geram diferentes valores e abraçam diferentes formas de vida. Mas isso não significa que a tortura ou a violência são toleráveis em contextos distintos. O sangue tem a mesma cor, aqui ou na China, como diria o bardo.

Marx é outra história. Como explicar o apelo do velho Marx, sobretudo sabendo que o marxismo jaz no caixote do lixo da história? Bom, talvez respondendo que o marxismo, ou uma certa interpretação dele, não jaz no caixote do lixo da história. Em 1989, quando o Muro de Berlim caiu com estrondo (e sem ninguém contar) toda a gente acreditava que o fim da história batia às portas do Ocidente. O liberalismo triunfava e Fukuyama, um intelectual mediano que desmentia Hegel com um livro pseudo-hegeliano, foi o profeta do novo milagre.

Erro. Para começar, o "neoliberalismo" não triunfou na Rússia emergente (um doloroso fato para os russos). E, para acabar, grande parte dos manifestantes anti-globalização, que gostam de partir vitrinas para matar o tédio e fazer passeatas em Porto Alegre, continuam a marchar com Marx debaixo do braço. O que não deixa de ser irónico: Marx foi um dos grandes críticos do capitalismo mas --atenção, atenção-- ele nunca defendeu a destruição do capitalismo. Quem leu Marx sabe que o marxismo é uma teoria científica da história: o capitalismo acabaria por gerar a sua própria destruição. Era, por assim dizer, inevitável. Combatê-lo, como fazem os neo-marxistas, é estar do lado da reacção, diria Marx.

Talvez por isso o número 1 da lista não devesse ser ocupado por Marx, mas sim por Lenin. Porque Lenin, que deturpou grandemente a mensagem de Marx, foi incapaz de respeitar a natureza alegadamente científica do marxismo. Não era possível esperar que a históiria cumprisse o seu fim: era necessário precipitar esse fim, pela luta revolucionária e armada.

Se Marx soubesse o que os seus herdeiros andam a fazer pelo mundo, ele daria voltas na tumba.




Mais simpática é a lista do British Film Institute. Quais os filmes que todos os adolescentes devem ver (até aos 14 anos)?

Anotem: "The Wizard of Oz" ("O Mágico de Oz", 1939), o clássico de Victor Fleming que me perseguiu em sonhos durante décadas (ainda hoje persegue; mas não espalhem); "Ladrões de Bicicletas" (1948), obra de Vittorio De Sica que redefiniu o cinema italiano do pós-guerra; "The Night of the Hunter" ("O Mensageiro do Diabo", 1955), escolha séria e filme sublime, de Charles Laughton, com um imbatível Robert Mitchum ("Para mim, existem apenas duas formas de representação: com cavalo e sem cavalo"); "Les 400 Coups" ("Os Incompreendidos", 1959), de François Truffaut, um dos raros "nouvelle vague" que sobreviveu ao espírito do tempo (as minhas desculpas aos godardianos); "E.T." (1982), de Spielberg, a mais bela parábola sobre a vida de Cristo: a história do extra-terrestre que desce dos céus, espalha alegria entre os humanos e regressa de onde veio, em ascensão celestial. E mais cinco que, pessoalmente, são dispensáveis: "Onde Fica a Casa do Meu Amigo" (1987), de Kiarostami (diretor de um filme bem preferível, "O Sabor da Cereja"); "Show me Love", uma produção sueca de 1998 que não vi (e, se eu não vi, não vale a pena); "Kes" (1969), de Ken Loach (neo-realismo inglês, não, por favor); e dois filmes animados, "Spirited Away" (2001) e "Toy Story" (1995).

Posso substituir estes cinco? Então sugiro "Fanny e Alexander" (1982), de Bergman; "Hope and Glory" ("Esperança e Glória", 1987), de John Boorman; "A Perfect World" ("Um Mundo Perfeito", 1993), de Clint Eastwood; o "Pinocchio" da Disney (a versão de 1940); e também "My Fair Lady" (1964) que, apesar de não ter crianças e não ser para crianças, tem mulheres e transforma qualquer futura mulher numa Audrey Hepburn em potência.

Falou e disse.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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