Pensata

João Pereira Coutinho

08/08/2005

Para acabar de vez com o jornalismo

24 de julho

LISBOA - Vamos salvar o jornalismo? Então chegou a hora de acabar com o velho jornalismo. Mark Kramer, professor em Harvard, visita Lisboa e avisa: os jornais estão mergulhados em crise profunda. Vendas em queda. Leitores em fuga. Internet. Televisão. Rádio. As pessoas ouvem fatos e dispensam jornais que repetem os fatos. Com 24 horas de atraso. Aplausos, aplausos. Mas diz mais: se o jornalismo quer vencer o impasse, chegou a altura de abraçar uma forma "narrativa" de jornalismo. Os fatos são importantes. São a base, o solo, onde lançamos os alicerces da nossa inteligência. Mas os leitores querem mais do que fatos: querem o confronto de um ser humano com eles. E o relato --literário, sim; pessoal, sim-- dessa realidade primordial. Os leitores querem histórias, no sentido mais nobre do termo. Os leitores querem contadores de histórias.

Concordo com Kramer. Mas as palavras dele não são totalmente originais. Num dos livros mais impressivos sobre a matéria ("A History of American Literary Journalism"), John Hartsock mostra como a idéia de "jornalismo narrativo" não começou hoje. E não começou, ao contrário do que se pensa, com a gloriosa geração dos "sixties", personificada em Tom Wolfe, Norman Mailer ou Truman Capote, os três cavaleiros do meu Apocalipse. Começou antes, bem antes: no período pós-Guerra Civil, nas últimas décadas do século 19. Nos Estados Unidos, claro, sobretudo nos textos do esquecidíssimo Stephen Crane.

Quem lê Crane hoje em dia? Crane relatava os mortos na Guerra Hispano-Americana e perguntava: o que são nomes e números quando a morte destes homens transcende nomes e números? Quem são estes soldados que todos os dias tombam na batalha? Quais são as suas famílias? Em que terras viveram? Em que casas? Não será possível dar rosto a esta gente e salvá-la do esquecimento numérico e burocrático?

É possível. Foi possível. E um gênero estava criado. Contra o positivismo alegadamente científico, que reduzia a realidade social à linguagem do laboratório, uma reação humana, demasiado humana. E uma corrente "literária" que acabaria por dominar o jornalismo americano ao longo do século 20 e em momentos dramáticos da sua história. Como na Grande Depressão de 1930 e 1940. Uma vez mais, era preciso transcender análises econômicas e gráficos acadêmicos. Era preciso relatar os dramas rurais (e reais) do Alabama, como James Agee fez em "Let Us Now Praise Famous Men". Sem esquecer a prosa de Edmund Wilson, Ernest Hemingway e toda a geração da "New Yorker", surgida pouco antes.

Assim se entende como o "jornalismo narrativo" não começou com a geração dos "sixties". E não começou porque Tom Wolfe ou Truman Capote limitaram-se a receber um riquíssimo patrimônio para enfrentar os dramas do tempo: a contra-cultura, o Vietnã. A morte de Sua Alteza Real, John F. Kennedy, que arrasou uma nação. E a luta pelos direitos civis. Como sempre, o jornalismo abraçava formas narrativas como forma de responder aos dramas presentes. Dramas que transcendiam o jornalismo burocrático presente.

E hoje? Hoje vivemos na ressaca de um sonho que durou entre duas quedas: a queda do Muro de Berlim, em 1989; e a queda de duas torres gêmeas, em 2001. Esse tempo arcádico está acabado. Mas a crise atual não é apenas uma crise alimentada pela instabilidade terrorista que paira sobre as sociedades ocidentais. É também uma crise do próprio jornalismo. Da possibilidade do jornalismo ser algo mais do que repetição senil de fatos, lançados por agências noticiosas e repetidos por jornalistas preguiçosos que, na maioria dos casos, escrevem sobre Washington ou Jerusalém sem nunca terem visto um amanhecer no Capitólio ou um crepúsculo na Cidade Antiga.

Talvez eu seja um incurável romântico, que leu Joseph Mitchell até à insanidade. Mas a sobrevivência do jornalismo no mundo moderno passa pelo fim do jornalismo antigo. Passa, até, por um antijornalismo, capaz de enterrar essa "objetividade" que se confunde com uma lista de supermercado. Eu não quero apenas fatos. Eu não quero a mera repetição de fatos que ouvi na noite anterior, disparados por uma boneca articulada no noticiário das oito. Eu quero saber o que existe por dentro dos fatos. Uma guerra, uma vitória? Eu quero saber quem são os derrotados, quem são os vitoriosos. Eu quero saber o que sentem os derrotados, o que sentem os vitoriosos. Como se portam e comportam. Eu quero ação e contradição. Palco. Iluminação. Eu quero ouvir. Eu quero ouvir gente a falar. Eu quero uma voz humana que, como Dante, seja capaz de descer às profundezas da nossa vida. E que regresse, ainda, para contar.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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