Pensata

João Pereira Coutinho

22/08/2005

Teremos sempre São Paulo

8 de agosto

Viagem para São Paulo. Aeroporto cheio, é verão por aqui. Vou passando malas, vazias, que voltarão cheias (espero, obrigado, Antonio Carlos Secchin, "Guia dos Sebos", Editora Nova Fronteira, 126 págs.). No detector de metais, algo apita. Talvez seja a minha chapa, uma chapa de metal de dez centímetros que tenho na cabeça, ferimento de guerra, história longa e, claro, inventada. Não é. A minha gilete de barba não pode embarcar. Entendo. Posso sacar a gilete no meio da viagem e ameaçar os passageiros com um ataque capilar.

- Ou desviam o avião para Cuba, ou eu barbeio todo o mundo!

Deixo ficar a gilete. Já dentro do avião, com uma comidinha vagabunda à minha frente, verifico que a TAP continua a servir os seus repastos com facas de metal. A loucura é uma questão de perspectiva.




Como evitar conversas com desconhecidos? Existem técnicas várias. Dormir. Ler. Ouvir música. Simular demência. Simular surdez. Simular demência e surdez. Ou, em atualização moderna, dizer simplesmente que sou político (do PT). Não, não resulta: o meu sotaque é a minha traição. Então o companheiro de viagem aproxima-se. Temor e tremor. Ele diz "bom dia", eu faço um gesto com as mãos (sou surdo e mudo, lembram-se?). Ele sorri respeitosamente. Senta-se, coloca os auscultadores. Durante nove horas, tenho um imitador de Marisa Monte ao meu lado, que passa todos as músicas da diva no iPod e canta alto sem sentimento de culpa. Beija eu/ Beija euà.




Dizem que São Paulo é a mais feia cidade do mundo. Será? Não creio. Uma mistura de Tóquio e Istambul, mas com tesão para dar e vender. Fico junto à avenida Paulista. Fim de tarde. Primeiro pensamento: ainda não fui assaltado. Segundo pensamento: ainda não fui atropelado. Com a passagem das horas, o segundo pensamento torna-se mais relevante do que o primeiro. Já tinha visto de tudo (incluindo Nápoles, onde as calçadas não são propriamente lugares seguros para os pedestres). São Paulo é outra história. Os semáforos são um pormenor. As passagens para pedestres são graffiti no asfalto, não mais. Antes de cruzar as ruas, relembro as imortais palavras de Clint Eastwood ("Do you feel lucky, punk?") e depois arrisco. Há uns anos, um taxista londrino dizia, com jocosa irritação: "In Paris, when you cross a street, you're a living target".

Ah, vem para Sampa, rapaz.




São Paulo não é propriamente Paris. Mas, ao contrário da cidade dos iluministas, é a coisa mais filosófica do mundo. Aterrei há cinco horas e já vi um Parmênides (numa cafeteria), já conheci um Platão (no hotel). Se a coisa continua, desconfio que amanhã cruzo com Descartes e Pascal (e ainda só vamos nos pré-modernos).




No quarto, alguém deixou fruta (dispenso; não sou macaco) e, na tv, debate com Plínio de Arruda Sampaio que, segundo consta, é candidato à liderança do PT. Fiz uma promessa a mim mesmo (e "mim mesmo" fez uma promessa ao analista) que não perderia dois minutos com política nesta semana paulista. Mas Plínio arruina a minha semana (e a minha promessa) com afirmação bombástica: a história do PT é uma história de luta com 500 anos.

Pausa. O hino nacional português desce sobre o quarto. A bandeira patrícia ondula ao vento. E até Pedro Álvares Cabral visita-me numa nuvem imaginária. "Defende o teu povo, verme!" Certo, Pedro, fica tranquilo. Não respondo a provocações. A ideia de Plínio é simplória: o PT luta contra a opressão e o Brasil tem quinhentos anos de história opressiva. Conheço o argumento. E daí? Os portugueses saíram do Brasil em 1822 mas, por Deus, ainda hoje continuam em Portugal.

Além disso, a retórica de Plínio é pura fantasia. Lula enfrenta grave crise política e o PT foi tomado de assalto por uma quadrilha sem vergonha? Plínio atribui as culpas, não aos corruptos e aos criminosos mas ao grande capital, que arruinou a missão casta de um partido casto. A ideia de Plínio, creio, é transformar o Brasil numa Venezuela, regressando a um "socialismo primitivo" onde todos vivem na selva e se amam mutuamente, como na utopia de Rousseau. Não sei se o Brasil embarca nestas loucuras. Pessoalmente, Plínio fez-me embarcar no catolicismo perdido da minha infância. Eu, confesso, já comecei a rezar.

9 de agosto

Iniciei a maratona gastronómica. Almoço no Rubayiat. Provo pedaço de carne que Deus cozinhou no Paraíso. Conspirações brandas sobre Lula, o PT, o estado da literatura brasileira atual (aviso: ler Bernando Carvalho). Falamos sobre a polêmica clássica entre os Andrades (Mário e Oswald). Alinho por Oswald, claro, apesar de excessos líricos (e ideológicos) que não mordo. Gosto do burguês. Gosto dos burgueses. Gosto desse "purée de batatas morais" que não espera nada, não deseja nada. Flat, como onda de mar morto. Pior: acredito que os males do mundo nascem no dia em que o burguês deseja transformar o puré em fritada. É a história dos ovos e da omelete, que Lenin, acho, gostava de citar, na construção do seu prato ideal. Por que não partir uma dúzia de ovos? E, se a coisa não resulta, por que não partir mais uma?




Jantar íntimo junto ao Jardim Ibirapuera, parte civilizadíssima da cidade. Existe uma Praça Pereira Coutinho por perto. Agradeço à comissão de festas, mas não era necessário. Come-se bem no Brasil. Em São Paulo, come-se barbaramente bem. As conversas oscilam entre a herança de Freud e a herança de Lula. Faz sentido. Lula é, em vários sentidos, o maior ato falho da consciência brasileira. Duvidoso é saber se os brasileiros estão dispostos a matar o pai, salvando a figura materna da República. Não creio. A quem interessa o impedimento de Lula? Não interessa à oposição, que espera devorar o homem em 2006, sem qualquer remorso golpista. Não interessa às elites, que prosperam com Lula e, ao contrário do que ele diz, jamais estariam interessadas em montar conspiração cinêfila para acabar com o governo. Momento cínico: o afastamento do Presidente só interessaria mesmo ao PT, que teria bom pretexto para regressar ao "socialismo primitivo" de Plínio e Cia. É um mau pretexto. É um desastroso caminho.

(Confissão pessoal: a primeira vez que ouvi falar de Lula, sorri com o nome. É que "Lula" era o apelido de Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, que revolucionou o jornalismo desportivo brasileiro nas décadas de 1940 e 1950. Durante o serão, alguém pergunta como se diz "apelido" em Portugal, no sentido brasileiro da coisa. Com visível orgulho lusitano, puxo pela língua materna e respondo: "Apelido significa nome de família em Portugal. No sentido brasileiro do termo, nós dizemos nick name". Aplausos para o gênio. De volta ao quarto, lembro agora: é alcunha, camaradas!)

10 de agosto

Revejo amigo português que se mudou para S. Paulo. Caminhamos pela rua e, entre nostalgias patrióticas, reparamos em espetáculo insólito: estão 17 graus (uma primavera digna de Tchékhov) e somos os únicos a descer a alameda em mangas de camisa. Para nós é Tchékhov, sim; para os habitantes da cidade, é a Sibéria de Soljenitsyn. Rostos gelados e enregelados. Lenços. Luvas. Uma mãe embrulha o filho numa manta de lã, para que a pobre criança suporte o inverno que se abateu sobre a cidade. Pungente. Só falta mesmo a menina dos fósforos e Mr. Scrooge, correndo pela rua, contente por estar vivo.




Não corre Scrooge, corremos nós. Chove, agora. Entramos em restaurante próximo, cujo nome me encanta. Pausa. Explicação prévia: toda a gente gosta de dizer que o mal da política moderna está na excessiva influência da publicidade e do marketing sobre os atores políticos do momento. Não vale a pena regressar ao caso brasileiro, a Marcos Valério ou Duda Mendonça. As campanhas partidárias, no Brasil ou na Europa, são obscenas. E a imagem dominou a substância para lá de qualquer salvação. Tony Blair gastou 3000 dólares em maquiagem nos últimos seis anos. Schröeder, o premiê alemão, pinta o cabelo todos os meses. Berlusconi já tirou tanta ruga que, muito provavelmente, vai abrir novo negócio de carteiras em pele natural. Mas comer num restaurante chamado "Sujinho" é, no mínimo, um ato de protesto e coragem contra a influência do marketing nas nossas vidas escravizadas. Melhor mesmo só se fosse "Lixeira", ou "Esgoto". Mas talvez isso fosse ir longe demais.

E injusto demais. O último T-Bone que comi com aprovação foi em Chicago, há uns meses: um pedaço de carne que devia estar no Smithsonian para estudo alargado pelas gerações vindouras. Legenda: "Assim se comia no século 20". Pois bem: o "Sujinho" acaba de destronar o "Morton's" por larga vantagem. Na rádio, um tema antigo de Adoniran Barbosa acompanha o repasto. Perfeito tiro ao álvaro: sempre disse que Adoniran também batia os blues por vantagem igual.

11 de agosto

Em 1939, a Europa marchava para a guerra. Uma vez mais. A posição de Salazar era dúbia. A neutralidade portuguesa não era certa. Então um pai do interior do país chamou o seu filho e resolveu não arriscar. Entregou-lhe uma passagem de barco e disse:

- Vais para o Brasil por que não te quero na guerra. Quando chegares a S. Paulo, procura um tal de Vieira. Conheci-o há uns anos numa das feiras daqui. Não sei onde mora, não sei o que faz. Mas ele te ajudará.

O rapaz foi. Viajou dezoito dias e dezoito noites. Desembarcou em Santos com uma mala, pouco dinheiro, nenhum futuro. Tomou um carro para S. Paulo. Chegou a S. Paulo e confrontou-se com a multidão. Resolveu seguir a multidão, sem destino ou propósito. Ao entrar numa das ruas do centro, avistou, ao longe, em letras pintadas: Livraria Lusitana. O nome. A memória de casa. Resolveu tentar, deprimido e exausto.

- Boas tardes. Vossa Senhoria não precisa de um caixa?

O outro respondeu:

- Tu és patrício. De onde vens, rapaz?

O rapaz explicou tudo. Vinha de longe porque o pai o fizera embarcar, com medo da guerra na Europa. O outro replicou:

- Eu só conheço um pai que talvez fizesse isso pelo filho: um tal de José Dias, que conheci em tempos, numa feira, em Portugal.

O rapaz chorava agora. De alegria, mas chorava. Então o livreiro, Vieira de nome e português de origem, tomou o rapaz nos braços. Providenciou um banho quente, uma sopa. Roupa lavada. Ofereceu-lhe emprego na mesma hora. E, no mesmo dia da chegada, Luis Oliveira Dias, o novo caixa da Livraria Lusitana, conheceria a mulher que foi sua. Chamava-se Celeste.

E o caixa? O caixa continua a negociar com livros. Tem oitenta e muitos anos. Sessenta de Brasil. E o sebo "Ornabi", na Benjamin Constant, a poucos metros da antiga "Lusitana" vale pelos livros e vale pelo homem atrás dos livros. A intenção era comprar umas dezenas de volumes: Roberto Campos; Vicente Ferreira da Silva; Amoroso Lima; esse milagre que aconteceu ao Brasil chamado Otto Maria Carpeaux, o homem que conheceu Kafka ("Meu nome é Kauka", disse-lhe o enfermo Franz, já destruido pela tuberculose). Comprei pouco, ou nada, porque a manhã foi passada em conversas brandas. Com Luis Oliveira Dias e com os fantasmas de toda essa gente, que o livreiro conheceu ao longo da vida. Impecavelmente vestido. Impecavelmente lembrado. Bigode impecavelmente aparado. A ironia dos velhos cavalheiros. E o desconto final: se o livro valia trinta, passa a valer vinte. O preço é inversamente proporcional ao interesse do leitor. Porque os livros são coisa séria. Em 1939, salvaram-lhe a vida. Até hoje.

12 de agosto

Manhã na Pinacoteca, tarde na biblioteca Mário de Andrade. S. Paulo devia visitar a primeira e salvar a segunda. Salvar a degradação visível do edifício e um impressionante espólio bibliográfico que sobrevive com milagres diários de gente profissional e dedicada. E visitar, no museu centenário e até 28 de agosto, a exposição da obra gráfica de Evandro Carlos Jardim, que desconhecia absolutamente e que absolutamente me deslumbrou. Evandro Carlos é o biógrafo visual da cidade. Não no sentido preciso, objetivo, fatual. Não existe nenhuma pretensão fotográfica, o que se agradece. O traço é pessoal, subjetivo, idiossincrático, conciliando vários tempos e lugares num mesmo tempo e num único suporte. Como, aliás, deve ser: as nossas cidades não se definem pelo rigor de pedras, nomes de ruas, formas de estátuas. As nossas cidades são feitas de memórias, de personagens, de sentimentos ou vozes que regressam do passado para, no sentido mais nobre do termo, nos assombrar. Teremos sempre Paris, alguém dizia, e com razão: não a Paris física, que se estende em avenidas ou boulevards. Mas uma Paris pessoal, passional, emocional, que resiste ao tempo e ao lugar e se eterniza para além do tempo e do lugar.




Tarde. Tardinha. Entro num táxi e indico novo endereço. Normalmente, os taxistas paulistanos são como os próprios paulistanos: silenciosos e solitários. Este, não. O meu sotaque portuga denuncia-me inapelavelmente. "Português?", pergunta ele. "Português", respondo eu. É o início da festa. O táxi vai avançando e o condutor, com uma alegria efusiva, comunica: "Vivi em Portugal vários anos, joguei no Belenenses, depois de temporadas no Santos e no Botafogo. Talvez o senhor se lembre de mim. Sou o Mazinho". Bom, confesso que não. Mas a questão é outra: Mazinho dirige um táxi por que está indeciso em aceitar convite para treinar na Bolívia. "Bolívia? Prefiro Portugal, companheiro", diz ele.

Tudo bem, Mazinho. Está dado o recado.




Mazinho gostava de Portugal, eu gostava da Argentina. Janto tarde com colega de ofício que ama Buenos Aires e me convence a viajar para a pátria de Borges, Cortázar, Bioy Casares. E de Juan José Saer, acrescenta, o autor de "A Ocasião", uma pequena obra-prima que a Companhia das Letras editou em 2005 e que foi uma das surpresas destes dias paulistanos. É a história de Bianco, o ocultista maltês que, acossado pelos positivistas de Paris, escolhe o exílio argentino (como Saer, aliás, escolheu o exílio francês) para preparar a sua vingança. O problema são as tentações da carne, claro, e os demônios evidentes do desejo, do ciúme e da traição, que arruinam a natureza impoluta do espírito.

13 de agosto

E por falar em demônios do desejo: é dia de feijoada. No Massimo, casa de Massimo Ferrari, que nos recebe à chegada. Desconhecia o sítio, mas Massimo é figura central da cidade (ver documentário que Daniel Piza escreveu, "São Paulo - Retratos do Mundo", onde Massimo tem participação inspirada, no mercado do centro).

De onde veio a feijoada brasileira com seu cortejo de carnes e acompanhamentos? Da Senzala, provavelmente: a feijoada era feita com as sobras da Casa-Grande pelos escravos que trabalhavam na roça. Isto dá um novo sentido ao pecado da gula: comer com sentimento de culpa passou a ser uma realidade literal. Ou quase.




Tarde nas livrarias. Oferta fraca. Paul Auster continua em alta, sintoma evidente de um certo abaixamento do gosto. Mas alguns livros recentes merecem leitura atenta.

Para além da obra de Saer, a Companhia das Letras resolveu editar ensaios de Isaiah Berlin (1909 - 1997), "A Força das Idéias". Não é a melhor obra de Berlin e alguns dos ensaios "Liberdade", "A filosofia de Karl Marx" - não excedem a curiosidade jornalística. Para os interessados nestes temas, melhor ler o clássico "Four Essays on Liberty" (1969) ou a biografia de Marx que Berlin publicou, ainda imberbe, em 1939.

Mas o livro é importante por dois textos essenciais para a compreensão do autor. O primeiro, que abre o livro, intitula-se "Meu caminho intelectual". Como o título indica, é resumo do opus berlinianus: o namoro com os positivistas lógicos em Oxford; a opção pela história das ideias (sobretudo depois da Segunda Guerra); e a construção do pensamento pluralista que, até hoje, continua a alimentar debates e polêmicas fartas.

O segundo ensaio do livro é "Escravidão e emancipação judaicas", um documento histórico para entender o sionismo do autor. Qual o lugar para os judeus depois do Holocausto? Koestler e, de certa forma, Eliot acreditava que os judeus do pós-guerra deviam escolher: ficar em Inglaterra, abandonando a identidade judaica; ou, então, partir para Israel. O texto de Berlin é uma defesa do Estado de Israel, não como construção puramente ideal mas em resposta à radicalidade de Koestler: partir ou ficar é uma opção, sim. Mas a opção não implica o abandono de uma identidade inapagável.

Ainda sobre Israel, aplaudo a coragem da Nobel em publicar "Em Defesa de Israel", de Alan Dershowitz, o afamado professor de Harvard que vai desmontando, com qualidades pedagógicas, os mitos da discussão sobre o Médio Oriente. Leitura recomendável, sobretudo numa altura em que Sharon retira de Gaza e poucos são aqueles que entendem por que motivo Israel ocupou Gaza (e a Margem Ocidental) em 1967. Terá sido por capricho imperialista? Por favor, leiam Dershowitz.

E leiam Anne Applebaum, "Gulag" (Ediouro, 749 págs.), retrato do sistema prisional soviético e seus campos de trabalho. Curiosidade: o termo "campo de concentração" não começou com Hitler e não começou com Lenin. Começou em 1895, na Cuba Imperial, quando Madrí resolveu "reconcentrar" camponeses cubanos em terras distantes, privando os rebeldes de comida. O conceito acabaria por "evoluir" (digamos assim) até chegar à Rússia de 1917 (e à Alemanha nazista) com brutal ferocidade. O livro venceu o Pulitzer em 2004 e Applebaum, que esteve em Lisboa há uns meses, explicou que uma das razões que a levaram a escrever a obra surgiu em Praga, atual República Tcheca, ao verificar a nostalgia pop com que turistas ocidentais compravam "memorabilia" soviética de cabeça limpa (t-shirts de Lenin, pin-ups com Stalin, etc.). Pergunta de Applebaum: por que motivo esta gente era capaz de ostentar ao peito a figura de um criminoso (como Lenin, como Stalin) mas nunca de usar a suástica ou um retrato de Hitler? Resposta evidente: por que a "intelligentsia" ocidental continua a olhar para Lenin e Hitler com duas batutas diferentes.

Ah, esquecia: Adriana Armory publicou "A fome de Nelson" (Record, 111 págs.). Em conversas com amigo paulistano, ele dizia que o teatro de Nelson refletia os dramas típicos de Dostoiévski: a ausência de valores morais num mundo sem Deus e dominado pela bestialidade dos homens. Nem de propósito: Armory fez tese de doutorado sobre a relação Nelson/Dostoiévski e este "A fome de Nelson", primeiro texto de fição da autora, pretende relatar, pela voz fantasmagórica de narrador impessoal, o internamento de Nelson Rodrigues no sanatório para tuberculosos de Campos de Jordão. É difícil escrever sobre Nelson sem imitar Nelson e Armory nem sempre escapa à tentação ("fé ululante", etc.). Mas o texto serve como experiência narrativa sobre período decisivo na obra de Nelson Rodrigues: momento em que, confrontado com a morte e a solidão venenosa dos seus companheiros de infortúnio, o dramaturgo forma os temas que acabariam por surgir e ressurgir em 50 anos de produção teatral sem par.

14 de agosto

O último Woody Allen digno de nota data de 1997: "Desconstruindo Harry", a odisséia de um escritor que, depois de longo bloqueio criativo, é revisitado por suas personagens no final.

Não sou Woody, não tenho bloqueios criativos, mas posso jurar que, na pista do aeroporto, as personagens da minha semana paulistana vieram despedir-se. De mim. Olho pela janela do avião, momentos antes da decolagem, e vejo, em plena pista, cada um deles. Sim, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, discutindo com violência contida. Franz "Kauka" e Nelson Rodrigues, ainda enfermos pela tuberculose a "morte branca" que acabaria por matar um e salvar o outro trocando endereços e prometendo livros para breve. O caixa Luis Oliveira Dias, vinte anos, não mais, com a mala pobre com que desceu no porto de Santos, a caminho de São Paulo. E, meu Deus do céu, o que é aquilo? É Mazinho, sim, camisola número 7, que entra na pista em dribles sucessivos. Finta Oswald, finta Mário, finta Kauka e Nelson. Mas é Plínio de Arruda Sampaio quem termina com a disputa, carregando forte. Cartão vermelho para Plínio. Inevitável: depois de Parménides e Platão, só mesmo um autor latino para acabar com tudo de uma vez.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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