Pensata

João Pereira Coutinho

05/09/2005

Marcha fúnebre

Um furacão de nome feminino destrói Nova Orleans e atinge seriamente o sul dos Estados Unidos. Os abutres começam a chegar. Os abutres sempre gostaram do sangue fresco das vítimas. Inevitável. Michael Marcavage, diretor da "Repent America", uma organização evangélica sediada em Filadélfia, comenta em direto: lamentamos as vidas perdidas. Mas é necessário entender os atos de Deus.

Pausa.

Entender?

Atos?

Deus?

Sim, afirma Marcavage. Nova Orleans era uma cidade pecaminosa. Jogo. Bebida. Sexo. Uma Sodoma negra, no sul da cristandade. Deus não dorme. Deus nunca dorme. Lembram-se de Noé e da arca? Reprise. Deus sempre utilizou a força das águas para castigar a fraqueza dos homens.

Marcavage não está só. E o fanatismo religioso não esgota todos os fanatismos disponíveis. Do outro lado da linha, no extremo oposto a esta conversa débil, encontramos o fanatismo secular. Leiam os jornais. Leiam os jornais europeus. Leiam os jornais alemães. Leiam as afirmações do Ministro do Ambiente alemão. A culpa é dos homens, diz Jürgen Trittin. A culpa é de um homem. A culpa, no fundo, é de Bush. O Protocolo de Kyoto que vá para o inferno? Então Nova Orleans que arda também, ou se afogue também. Bush se recusa a respeitar o Planeta, se recusa a assinar o protocolo, se recusa a reduzir a emissão de lixo para a atmosfera. O céu se revolta, os ventos acordam e os homens que paguem pela insensatez do presidente. E mais: Bush persiste na sua guerrinha privada, enviando para Bagdá homens que fazem falta em casa. Não olhem para Deus. Olhem para Washington. Bush tem sangue, ou água, nas mãos.

Bravo! Dois fanatismos gêmeos que partilham igual prazer. Os primeiros, em nome de Deus, sentem o inconfundível prazer dos moralistas. Os moralistas nunca suportaram a idéia de que alguém, algures, se diverte sem a autorização deles (obrigado, Mencken). E os segundos, em nome dos homens, sentem o prazer ideológico de utilizar a tragédia, qualquer tragédia, como comprovação suprema de suas teses sobre Bush: o incorrigível Bush, o limitado Bush, o criminoso Bush. Ambos, na sua cegueira imoral, negam a realidade.

Os primeiros negam a simples possibilidade humana de habitar livremente uma cidade, com suas virtudes e seus excessos. Nova Orleans. A cidade do jazz. Da Original Dixieland. De King Oliver e Louis Armstrong. Do French Quarter. Da mais inventiva gastronomia americana. E do jogo, sim. E do sexo, muito. E da bebida, por favor.

Os segundos negam todas as evidências, a começar pela científica. Não existe nenhuma relação comprovada entre aquecimento global e furacões desta magnitude. Sorry, patrulhas. Na década de 1950, e de acordo com o "Times" londrino, os Estados Unidos foram atingidos por 37 tempestades violentas. Na década de 1990, por apenas 19. É provável que o aquecimento global, sobre o qual não existe ainda definitivo consenso, reforce a intensidade dos furacões. Mas até isso é discutível: na década de 1950, dez furacões apresentaram valores extremos. Na década de 1990, apenas cinco. A ciência, ao contrário da fé, se discute.

E sobre os homens no Iraque, nenhuma atenção aos números: segundo o "The Wall Street Journal" da passada semana, a Guarda Nacional do Louisiana enviou 3.000 homens para o Médio Oriente. Em Nova Orleans, ficaram 8.000, sem contar com os milhares de reforços dos estados vizinhos. Três mil homens não param ventos e não colhem tempestades.

Nada disto significa ausência de erros. Houve negligência local, estadual e federal, sim, apesar dos constantes apelos para que as populações abandonassem a cidade. A ajuda também demorou a chegar --incompetência grave, sobretudo num país com riqueza fahrenheit. E a falta de investimento no reforço dos diques --uma constante ao longo de vários governos-- foi uma sucessão silenciosa de pequenos crimes contra uma cidade construída em local vulnerável, corria 1718.

Mas o fanatismo continua, indiferente a pormenores. E continua porque encontrar um responsável --seja Deus, seja Bush-- tranqüiliza a nossa condição. Ou, dito ainda de outra forma, acreditar na responsabilidade de Deus, ou de Bush, permite iludir a verdade mais cruel: séculos e séculos de "humanismo" ocidental e continuamos a ser material dispensável quando a natureza desperta para nos devorar. Não há ego que resista à marcha fúnebre de Nova Orleans.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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