Pensata

João Pereira Coutinho

03/10/2005

O mundo de Tariq Ali

Confesso: às vezes penso que recuei trinta ou quarenta anos e estou encerrado num filme de terror. No passado dia 21 de setembro, a Folha de S. Paulo publicou em editorial um crítica justa, porém branda, a Tariq Ali e suas teses delirantes. Parece que Ali, um radical paquistanês que se apresenta ao mundo com honras de "pensador" e "acadêmico", afirmou no Rio de Janeiro que o problema do Brasil era não aprender a lição de Chávez, o caudilho Chávez que tem feito milagres na Venezuela. Tariq Ali leu e não gostou do seu alegado "ranço antidemocrático". A carta de Ali, publicada na passada sexta-feira na edição impressa da Folha, revisita o conselho central: o Brasil deve aprender com a Venezuela, sim. E como?

Primeiro conselho do sábio Ali: Brasília não pode viver dependente do FMI, do Banco Mundial e da OMC. Brasília deve declarar guerra a essas maléficas instituições e a tudo aquilo que cheire a "capitalismo" e a "neoliberalismo".

Segundo conselho de Tariq: a democracia brasileira não é propriamente uma democracia vibrante como na vibrante democracia de Chávez. Na Venezuela, "os bolivarianos revigoram e fortalecem a democracia". Exemplo: o último referendo, que Chávez venceu de forma limpa e que Jimmy Carter, observador no local (e conhecido admirador de Fidel Castro), sancionou com prazer.

Terceiro conselho do talentoso sr. Ali: o "socialismo" de Chávez conseguiu transformar a economia venezuelana num exemplo de prosperidade para a América Latina e até, Deus queira, para o mundo inteiro. Porquê? Porque Chávez soube redistribuir a riqueza pelos mais pobres, garantindo comida, saúde e educação para todos. A popularidade de Chávez não acontece por acaso: ela nasce da natureza excelsa da sua generosidade.

Ponto prévio: Tariq Ali não é um "pensador" e não é um "acadêmico". É apenas um exemplo de como o radicalismo intelectual ganha estatuto de respeitabilidade no mundo ocidental. Se dúvidas houvesse, bastaria ler um dos seus últimos textos na New Left Review. Foi escrito para o número de maio/junho de 2003. Sobre a situação no Iraque. E sobre os desejos de Tariq Ali para a situação iraquiana. Depois de repetir a conhecida cartilha conspiratória que não revela inteligência nem originalidade (Washington dominada por judeus, o exército americano se comportando como as tropas de Hitler em 1940, e etc., etc.), Ali expressa um desejo macabro: que as tropas ocidentais presentes no Iraque sejam fortemente massacradas pela "resistência". Tariq Ali não escreve uma linha sobre Saddam Hussein (esse benemérito) e não espera, nunca, jamais, que o Iraque possa ter um regime ligeiramente mais "civilizado" (o horror! o horror!). Ali vai mais longe: ele expressamente deseja que o destino de americanos, ingleses e restantes "invasores" seja similar ao destino de Nuri Said. Quem foi Nuri Said? Lamentavelmente, Ali não explica. Explico eu: Nuri Said foi primeiro-ministro iraquiano, assassinado em 1958 e com o corpo arrastado pelas ruas de Bagdá.

Não sei se estas imagens, plenas de humanidade, faturam no coração dos intelectuais brasileiros (e ocidentais). Não deviam. Como não deviam faturar as três teses de Tariq Ali para "salvar" o Brasil, partindo do pressuposto, aberrante e até ofensivo, de que o Brasil precisa de ser salvo pelo gênio político de Tariq Ali.

Primeiro: o socialismo de Chávez produziu riqueza e uma economia plena de vitalidade social? Tariq Ali leu o editorial da Folha de 21 de setembro. Com apreciável modéstia, não leu o editorial que o mesmo jornal publicou cinco dias depois. Eu relembro: segundo um informe da Comissão Econômica para a América Latina, com base em dados de 2004, não houve diminuição da pobreza e da desigualdade na Venezuela. Pelo contrário: houve até um retrocesso de 64% no índice de redução da miséria entre 2000 e 2004. O próprio Instituto Nacional de Estatística da Venezuela confirma os resultados. A "revolução bolivariana", que no essencial significa vender petróleo a altos preços, não impediu que a pobreza crescesse: de 42,8% no primeiro semestre de 1999 para 53% no fim de 2004. O silêncio de Tariq Ali sobre a matéria é o melhor comentário sobre a sua honestidade.

Claro que nada disto deve espantar uma única criatura que habite o mundo real: a "revolução bolivariana" não se distingue das experiências populistas e autoritárias que, ao longo do século 20, mergulharam a América Latina no caos político e econômico. Os passos são clássicos e os resultados, de tão previsíveis, também: Chávez entende que a melhor forma de transformar o país passa pela apropriação progressiva das instituições do Estado, a começar pelo judiciário, e pela nacionalização progressiva da economia, a começar pelo petróleo que sustenta literalmente o "milagre" venezuelano. Até quando? Eis a pergunta fatal. A Venezuela vive de uma dependência petrolífera que não vai, porque não pode, durar. Olhando para a sua própria história, sobretudo para a presidência de Carlos Andrés Pérez, na década de 1970, entendemos facilmente o que acontece no momento em que os preços mergulham no abismo: o país vai atrás. Sobretudo quando não existe investimento produtivo e, palavra essencial, liberalização econômica.

A tudo isto Tariq Ali responde com argumento aparentemente forte: Chávez é um produto democrático e o seu último referendo foi ganho de forma limpa. Ainda que isto seja verdade (revelações da reputada Penn, Schoen & Berland Associates desmentem a forma "limpa" como Chávez ganhou o referendo), o argumento é historicamente inútil. De que falamos quando falamos de "democracia"? Falamos de uma mecanismo processual onde a maioria elege o seu representante. Não falamos de "liberdade", não falamos de "justiça", não falamos de "igualdade". Falamos, apenas, de "democracia". E a "democracia", ao contrário do que pensam os "democratas", não basta para construir um regime liberal, ou seja, um regime capaz de proteger as liberdades essenciais de uma sociedade. O voto livre é uma condição para. Não é uma garantia de. Na década de 1930, Hitler é o exemplo clássico de alguém que utiliza a democracia para liquidar a democracia. E, naturalmente, a esmagadora maioria dos regimes africanos, que persistem na corrupção, são regimes democráticos. Robert Mugabe venceu as últimas eleições com resultados esmagadores no Zimbabwe. Nada disto impediu Mugabe de lançar uma "reforma agrária" iliberal que, aliás, se aproxima da "reforma agrária" que Chávez lançou na Venezuela.

Resta o conselho final de Tariq Ali: o Brasil deve enterrar o seu namoro capitalista e esquecer as maléficas instituições internacionais. Isto seria um conselho válido, além de insano, se o Brasil fosse o exemplo de um país "neoliberal". Que o mesmo é dizer: um país com baixa carga de juros, com um Estado que não devorasse uma fatia generosa do PIB e com uma cultura de concorrência devidamente regulada (mas não manipulada) pelo poder político. Infelizmente para o Brasil, o "neoliberalismo" ainda está na sua fase primitiva. O drama do Brasil não está no capitalismo; está no fato, bem doloroso, do país ainda não ser suficientemente capitalista. Os portugueses, com a sua tradição mercantilista e obviamente atrasada, são em parte responsáveis por esse pesado fardo histórico. O que não deixa de ser uma tragédia, e uma tragédia para ambos os povos: só é possível redistribuir a riqueza quando existe riqueza para redistribuir. Ou seja: quando existe concorrência, produtividade e abundância. Até Karl Marx, que não era propriamente um "neoliberal", entendeu essa evidência. Sem riqueza criada, não há riqueza para ninguém. Apenas o contínuo rapar do tacho, até ao dia em que no tacho não há mais nada para rapar.

E se vocês pensam que isso incomoda Tariq Ali, pensem de novo. Porque entre a "socialista" Caracas ou a "capitalista" Londres, adivinhem onde o nosso Ali prefere viver e engordar.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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