Pensata

João Pereira Coutinho

17/10/2005

Frango assado

Tenho duas coxas de frango no meu prato. Comer ou não comer, eis a questão. Na TV, as piores notícias possíveis: a gripe das aves já chegou na Romênia. Pois é. Tomou avião na Ásia, fez escala na Oriente Médio e se mudou de armas e bagagens para o Leste da Europa. Daqui a nada, estará em minha casa. Daqui a nada, estará em sua casa. Assustados?

Estejam. Números dramáticos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, 7 milhões de pessoas podem morrer em atroz agonia. As Nações Unidas falam em 150 milhões. Michael Osterholm, epidemiologista americano, fala em 360 milhões. E João Pereira Coutinho, ouvido pela Folha, declara: "O ideal seria 500 milhões, por que é cada vez mais difícil você conseguir uma boa mesa para jantar num sábado à noite". Infelizmente para Coutinho, é provável que o apocalipse não comece já.

A idéia de uma pandemia trágica implica duas coisas. Primeiro, que o vírus responsável pela morte das aves se propaga para a espécie humana. E, além disso, que a espécie humana é capaz de se contaminar, como aconteceu em 1918 com a famosa gripe espanhola. Cenário improvável. Até ao momento, morreram 60 pessoas em 117 casos de gripe do frango conhecidos. Repito: 60. Como? Não pretendo violar a intimidade de ninguém mas os dados apontam para situação similar: para você morrer com a gripe do frango, é necessário um convívio apertado com o bicho. E quando eu falo em "convívio apertado", falo de relação amorosa com ele, o que naturalmente envolve dormir abraçado, beijá-lo loucamente e desejar construir um futuro a dois. Na Ásia, onde as populações rurais praticamente vivem no meio das aves e onde os cuidados de saúde estão na Idade da Pedra, essa relação existe e persiste. O que explica a mortandade --uma mortandade residual e, tendo em conta a expressão demográfica da zona, absolutamente ridícula. E por cá?

Bom, por cá, existe e persiste a nossa deliciosa histeria mediática que todos os anos inventa uma nova catástrofe para liquidar a Humanidade. Há uns anos, a doença das vacas loucas, pronta para arruinar milhares de vidas, praticamente arruinou os criadores de gado da Europa. Os preços bateram mínimos históricos. Amigos meus converteram-se ao vegetarianismo de um dia para o outro. Eu engordei uns dez quilos de tanto churrasco comido e bebido (a sós). A loucura das vacas foi como veio.

Sem falar da pneumonia atípica, a famosa SARS, que em 2003 prometia milhões de mortos em poucas semanas. Ainda lembram? Morreram 800 pessoas, sobretudo na Ásia. Ou seja: morreram incomparavelmente menos do que os milhares de velhos e doentes que todos os anos morrem de gripe "normal" na mesma zona do globo. Aliás, em qualquer zona do globo.

Porque a verdade, a cruel verdade, é que nunca se esteve tão bem como agora. Vivemos mais. Vivemos melhor. A medicina alcançou progressos que seriam impensáveis para nossos antepassados. Claro que existem situações de miséria, sobretudo em África, onde a fome persiste. Mas até em África o mundo avança: de acordo com as Nações Unidas, a percentagem de povos do Terceiro Mundo que passam fome desceu de 35% em 1970 para 18% nos dias de hoje. Apesar da explosão demográfica.

Sobram as guerras, claro. Mas se você pensa que o mundo está menos pacífico, você está errado. A percepção dos conflitos através da mídia não significa que os conflitos aumentaram. Pelo contrário: o mundo está mais pacífico e a guerra --a guerra entre Estados e a guerra dentro dos Estados-- foi gradualmente diminuindo nas últimas décadas. Segundo o historiador britânico Niall Ferguson, só nos últimos três anos terminaram 11 conflitos maiores: de Angola ao Ruanda, do Sri Lanka à Indonésia. E nunca, como hoje, existiram tantas democracias na face da Terra.

Não admira que a Humanidade esteja perdida de tédio, criando, recriando e até filmando a sua própria aniquilação física. O clima. As vacas loucas. A gripe do frango. Os marcianos. Tudo serve para aliviar o sentimento de culpa que sentimos no meio de tanto conforto.

E, já agora, no meio da tanta abundância: duas coxas de frango que esperam no prato. Por mim. Até já. E se o vírus do bicho bater entretanto, por favor, digam que eu estou ocupado.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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