Pensata

João Pereira Coutinho

31/10/2005

Arte de roubar

Eu gostava de ser ladrão. Falo a sério. Sonhos de infância, que me perseguem desde o berço: ser vampiro e ser ladrão. Falhei ambos com sentimento de culpa. A idéia de roubar é um dos grandes prazeres da civilização. Não para vender. Não para enriquecer. Gostava de roubar arte como os vampiros roubam vida eterna a donzelas indefesas. Atacar durante a noite. Chegar em casa com um Turner debaixo do braço. Pendurar o quadro na sala. Abrir uma garrafa e adormecer com a vista. É a minha costela Thomas Crown. Ah, e com Nöel Coward cantando "A Room with a View". Serve?

Por isso ergo a minha taça --vazia, vazia-- para o jogo que o Museu Munch lançou na Noruega. Vocês sabem: "O Grito", obra do expressionismo europeu, foi roubado em 2004. Agora, o Museu de Oslo resolveu vender um jogo de tabuleiro para crianças de todas as idades. "O Mistério do Grito", eis o nome. O desafio é ser ladrão e aprender arte roubando, e roubando, e roubando.

Vozes moralistas, na Noruega e na Europa, estão chocadas. Não é possível brincar com coisas sérias. E o roubo de arte é coisa séria: o quarto maior mercado negro mundial, segundo a revista "Foreign Policy", depois da droga, da lavagem de dinheiro. E das armas.

Calma, moralistas. Repito: eu não quero roubar para vender. Vender? A minha ética de ladrão não o permite. Eu quero roubar para ter. Há anos que sonho com meus golpes, cartografando museus por todo o mundo e fazendo uma coleção mental dos cinco ou seis quadros que seriam docemente levados por mim.

Curioso: das grandes obras roubadas nos últimos tempos, não ficaria com nenhuma. Dispenso "O Grito", de Munch (1863 - 1944), que não fica bem na minha sala. Pela mesma razão que não roubaria nenhum barroco, nenhum romântico: o excesso de dramatismo sempre me pareceu uma forma preguiçosa de expressão. E "O Grito", mil perdões, tem uma qualidade tão imensamente kitch --céu avermelhado, figura despersonalizada-- que estraga qualquer ambiente.

Também não ficaria com nenhuma obra de Leonardo Da Vinci (1452 - 1519), muito menos com a sua "Madonna com a Criança", que alguém levou de um castelo britânico em 2003. Bom proveito. Comigo, não. Especialistas de história da arte abanam as suas cabeças e reprovam as minhas escolhas. Eu sei que Leonardo era génio, e bla bla bla: a capacidade única para pintar com a atmosfera, envolvendo figuras numa morbidez sensual, costuma fazer as delícias de turistas japoneses. Mas eu não sou turista. Eu não sou japonês. Leonardo é narcótico. E eu morro de sono com ele.

(Já agora, informação suplementar: não existe nenhum pintor chamado Da Vinci. Vinci, junto a Florença, era a terra de Leonardo, não mais. Por isso "O Código Da Vinci", como alguém dizia, é o produto de um analfabeto. O analfabetismo de Dan Brown começa logo no título do livro. Mas divago.)

E Pablo Picasso (1881 - 1973)? Em 1999, roubaram "Retrato de Dora Maar" de um iate na costa francesa. Lamento. Não ficaria com nenhum Picasso, embora um retrato de Dora Maar, uma das poucas mulheres que não assustava o bicho, me fizesse pensar duas vezes. Picasso aplicou literalmente a lição de Cézanne, ao reduzir o mundo à geometria --uma forma tirânica de experimentação estética. Mas roubava Cézanne, sim. Engraçado: em 1978, alguém roubou "Bouilloire et Fruits" nos Estados Unidos. Bravo. O quadro voltou a ser recuperado vinte anos depois. Pena. Eu voltava a roubar: Cézanne (1839 - 1906) compreendeu o esgotamento impressionista e regressou à natureza imutável da matéria para não enlouquecer com a luz fugidia de Monet. Fez bem. O que passa, passa. Mas existe uma estrutura que fica: a evidência de um mundo que não se altera com o simples capricho do sol.

Depois existem quadros roubados de autores que estimo, mas que trocava por outros quadros. Em 1990, alguém roubou, em Boston, "O Concerto", de Vermeer (1632 - 1675). Qualquer Vermeer vale a roubalheira. Mas, se posso escolher, iria a Dresden, na Alemanha, roubar a sua "Jovem lendo uma carta", que povoa os meus sonhos há vários anos. Aliás, jovens leitoras sempre despertaram os meus instintos mais nobres. Sim, querida, até você. E se a jovem de Vermeer fica bem na parede da direita, iria a Washington só para roubar outra jovem leitora --a de Fragonard (1732 - 1806)-- para a parede da esquerda. Imagino: as duas, lendo baixinho, enquanto eu escrevo cartas de amor só para elas.

Washington: ficaria uns tempos pela cidade, preparando meus próximos golpes. Só na Galeria Nacional, com Fragonard na sacola, assaltaria novamente. Existe um Corot, com "A Vila de Avray", que cobiço sem cessar: Corot (1796 - 1875) é o único artista "moderno" que pinta folhas de árvores como se fossem pétalas de flores. E, se estou em Washington, melhor regressar à Europa com as "Duas Mulheres à Janela", do esquecidíssimo Murillo (1617 - 1682). A pintura religiosa de Murillo é cansativa e, se me permitem, um pouco pedestre. Os quadros seculares, não. Gosto destas duas mulheres que riem para mim: a mais velha, tapando a boca, gesto de maturidade e pudor; a mais nova, sorrindo apenas, com a inocência própria dos simples, ou dos justos.

E de volta à Europa, duas paragens breves. Em Paris, roubaria Manet (mas não roubaria Monet). Em Londres, se houvesse tempo e espaço, traria sempre um Turner, claro, e os pré-rafaelitas na bagagem: roubaria um Millais (não confundir com Millet) e roubaria um Rossetti (não confundir com Rosselli). Os tratados afirmam que a irmandade pré-rafaelita pretendia um regresso solene à medievalidade mística. Respeito os tratados. Mas sempre vi nos quadros de Millais (e de Rossetti) um sentido paródico, e auto-paródico, que é simplesmente hilariante.

Talvez assim a minha vocação ficasse saciada. E talvez assim a minha sala ficasse completa: duas meninas lendo; mais à frente, os risos de Murillo para as figuras de Rossetti e Millais; na parede do fundo, Cézanne e o mar revolto de Turner. E sobre a mesa? Esqueci. Mas vocês podem sempre dar uma ajuda, passando pelo museu da Paulista e enviando esse menino de Chardin que há anos chama por mim.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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