Pensata

João Pereira Coutinho

28/11/2005

Meu amigo Woody

Atenção, críticos. Eu tenho três palavras para vocês. Não. Sejam. Ridículos. Será preciso repetir? Falo em defesa de Woody, meu amigo Woody Allen, que há trinta anos --bom, há uns vinte-- vive cá em casa, na melhor estante do meu coração. E se vocês acham que estou sendo piegas ou sentimental ou excessivo, por favor, não tenham dúvidas: estou mesmo. E vou piorar.

Vocês conhecem a tese: Woody Allen começou o seu naufrágio em 2000, com "Small Time Crooks" (Trapaceiros). Continuou com "The Curse of the Jade Scorpian" (O Escorpião de Jade), "Hollywood Ending" (Dirigindo no Escuro), "Anything Else" (Igual a Tudo na Vida) e "Melinda e Melinda". Cinco filmes, cinco desastres de bilheteria. E os sábios deste mundo declarando a certidão de óbito. Woody está morto. Woody repete-se. Woody perdeu a graça. Woody perdeu a criatividade. Woody cansa. Ah, Deus, como eu gostava de aparecer na casa destes críticos e, com um bastão de beisebol, tratar do assunto com os meus vagares. Mas depois imagino que os críticos têm filmes de Cameron Crowe na sala --"Vanilla Sky", "Elizabethtown"-- e uma compaixão súbita apodera-se de mim. Tudo bem. Se eles querem lixo, eles que comam lixo.

O pior é que Woody acredita nos críticos. Ele diz que não lê --mas, acreditem, ele lê. Aparece aqui em casa, uma lágrima rolando por detrás dos óculos grossos, o tweed encharcado pela chuva que cai. "Eu não presto, Coutinho. Nunca serei um Fellini, um Bergman." Pobrezinho. Encomendo o jantar no chinês aqui do bairro e depois, ao som de Harry James, inicio o tratamento. Woody, senta aí.

O tratamento começa com uma revisão da matéria dada. Em quarenta anos de filmes, não existe um único --eu vou repetir, para vocês aí atrás: em quarenta anos de filmes, não existe um único que seja realmente mau. No próximo número de dezembro da revista "Vanity Fair", Peter Biskind, provavelmente um dos poucos críticos que respeito depois da morte de Pauline Kael, concorda comigo --ou, tudo bem, eu concordo com ele, não vou discutir quem é ovo ou galinha (mas eu pensei primeiro, Peter). Podemos não gostar de "Melinda e Melinda", um dos mais fracos da colheita. Mas "Melinda e Melinda", história contada em duas versões, como comédia ou como farsa, por grupo de amigos numa mesa de restaurante, revela um virtuosismo narrativo e cinematográfico que não se encontra na esmagadora maioria dos vagabundos que fazem filmes em Hollywood. Eu, pelo menos, não encontro --e confesso que só David Lynch e Clint Eastwood me obrigam a sair de casa com uma regularidade sazonal. (Scorsese? Depende. Muito.)

E os outros? "Igual a Tudo na Vida" dá para os gastos, sim. "Dirigindo no Escuro", história do diretor que fica cego e disfarça o problema para não ser despedido, é Howard Hawks vintage, sim. E com bónus: o filme do diretor cego acaba por ser um desastre, claro, mas os franceses elogiam. Touché. É o melhor comentário à cultura francesa atual. Sem falar dos diálogos. Os diálogos destes cinco --de todos os cinco, sem exceção-- são um prazer intelectual para mentes civilizadas: um sarcasmo blasé temperado pelo espírito de Nova York que Woody Allen criou e recriou.

(Esclarecimento: a Nova York que vocês imaginam que existe, na verdade, não existe. Só nos filmes de Woody, que praticamente sublimou a cidade --uma cidade invulgarmente desumana e agressiva-- a golpes de ternura.)

Mas o tratamento não acaba aqui. Peter Biskind escreve, e com razão, que os grandes diretores da história deixaram dois ou três filmes que fizeram o nome e a fama. Bognadovich dirigiu "A Última Sessão de Cinema" e "Lua de Papel" (pessoalmente, mais o primeiro que o segundo). Aconteceu na década de 70 e não voltou a acontecer mais. Mesmo Truffaut, um dos raros "nouvelle vague" que sobreviveu ao tempo, deixou "Os Incompreendidos", "Jules et Jim" e "Tirez sur le Pianiste" --na década de 60. Incluir "A Noite Americana", eu entendo, mas só por nostalgia. Truffaut deixou três filmes e, depois dos três, partiu para parte incerta. O mesmo para Orson Welles, que deixou quatro. Ou Coppola, que deixou três. Ou Cimino, que deixou um. Bertolucci, exatamente, nenhum.

Woody Allen não deixou dois. Não deixou três. Biskind arrisca 10: "Annie Hall", "Manhattan", "A Rosa Púrpura do Cairo", "Broadway Danny Rose", "Zelig", "Hannah e Suas Irmãs", "Crimes e Pecados", "Maridos e Esposas", "Tiros na Broadway" e "Desconstruindo Harry". Eu arrisco 12: todos esses dez e ainda "Love and Death" (A Última Noite de Boris Grushenko) e "Another Woman" (A Outra0, o filme que Cassavetes gostaria de ter feito com a mesma mulher (que, por acaso, até era a dele: Gena Rowlands, meu amor). E se falamos de obras-primas --definição de obra-prima, por J.P. Coutinho: objeto artístico que Deus, no Dia do Apocalipse, irá poupar na sua infinita misericórida para que os novos hominídeos não se sintam sozinhos na Terra (lembrar início de "2001", de Kubrick) --se falamos de obras-primas, dizia eu, bastariam três. "Hannah e Suas Irmãs", "Crimes e Pecados" e "Desconstruindo Harry".

"Hannah" é o mais solar dos filmes de Allen e mesmo nos meus piores dias --uns vinte e cinco todos os meses-- a história de Mickey, o hipocondríaco que recupera a fé com um filme dos irmãos Marx, é a única ressurreição laica que me comove. Mas não é apenas uma ressurreição. É uma resposta: a mais simples e bela resposta do cinema moderno. Podemos não encontrar um sentido de vida, um sentido para a vida, o caminho célere para a felicidade ideal, como as teologias descartáveis prometem de porta em porta. Mas existem pequenas ilhas de felicidade, por onde vamos saltitando como náufragos perdidos. São estas ilhas que dão alento no caos que nos consome. O rosto de Mariel Hemingway em "Manhattan" --ou o rosto da pessoa que amamos, tanto faz. Os discos de Django Reinhardt em "Poucas e Boas" --ou os discos que fazem a trilha sonora das nossas vidas, tanto faz. E, como nesse "Hannah" que me deixa num estado de felicidade irreal, os poemas de e.e. cummings que descobri devido ao filme. Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão generosas como Woody.

Generosas e sublimes, se por sublime entendermos tudo aquilo que aterroriza o fundo mais fundo das nossas certezas. E se Dostoievski estiver errado? E se o crime não implica necessariamente um castigo? E se a "consciência", como Nietzsche afirmava, é um anacronismo da civilização judaico-cristã para aprisionar os homens num mundo sem Deus? "Crimes e Pecados" é um anti-Dostoievski por excelência. Imagino título de primeira página: "Amante mata amante". E o lead: "Mas descobre que o ato não pesa na consciência". Assustados? Eu fiquei. Quando assisti pela primeira vez a "Crimes e Pecados", senti todas as certezas a ruir com o passar do filme. A minha alma é como o rosto de Martin Landau: consumida pela culpa, no início; liberta de qualquer culpa, no final. Ou quase. A natureza subversiva do filme é a única culpa a que não podemos escapar.

E "Descontruindo Harry"? É um afago na minha consciência e, suspeito, na consciência de todos aqueles que vivem das suas criações. Harry Block, belo nome, tem bloqueio criativo. Tragédia inevitável, quando sacrificamos tudo em volta pelo amor à arte --neste caso, à nossa. Mas Woody apresenta um paradoxal otimismo: se a arte nos alienou da vida, é a própria arte que nos devolve à vida. Sobretudo quando todos os personagens do escritor aparecem em homenagem final. Aplausos --deles e nossos. Quem diria, camarada. Quem diria que as nossas ficções, às vezes, são formas perfeitas de salvar a realidade.

Nem mais. Todos os anos, com a regularidade das aves, Woody regressa. Nós devemos regressar a ele com um sorriso grato e íntimo. Porque os filmes de Woody Allen são gratos e íntimos: nós entramos na sala, sentamos na mesa e ele vai servindo o jantar. Conhecemos todos os comensais. Sabemos que a comida não se altera com os anos: sal a menos, sal a mais --o cozinheiro é o mesmo. Os filmes de Woody Allen são uma família a que se pertence: ninguém deseja mudanças radicais ou desaparecimentos radicais. Desejamos apenas que seja outono lá fora e que as histórias, conhecidas e até repetidas, sejam embaladas por um fio de jazz.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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