Pensata

João Pereira Coutinho

24/01/2005

Fora do prazo

Aconteceu: Adriana Iliescu, 66, romena, professora universitária, deu à luz fora do prazo. O mundo olha com espanto para o fato e inicia debate moral sobre a matéria. A medicina pode fazer essas coisas? Os seres humanos podem exigir essas coisas? E a criança? Sim, meu Deus, que será da criança --uma criança condenada à vida e, com mãe sexagenária, condenada também a uma prometida e não muito distante orfandade?

Não quero incomodar os leitores da Folha mas posso garantir que enviei cartão pessoal a Adriana Iliescu. E não, não estou interessado em constituir família, apesar de minha inclinação natural por mulheres mais velhas (Adriana é uma gatinha; e solteira; mas deixa pra lá). Meu cartão pretendia parabenizar Adriana por sua singular idéia e fabulosa lucidez. Adriana fez o que eu faria. Adriana fez o que toda a gente devia fazer. Filhos? Só aos 60 ou 70, na melhor das hipóteses. Às vezes penso que o ideal era ter filho aos 80: recebê-lo nos meus braços, beijá-lo com ternura, desejar-lhe as maiores felicidades --e morrer no minuto seguinte. Que bom: não mudar fraldas, não aquecer leite, não ficar de plantão toda a noite (e ele berrando, berrando) quando tudo rola lá fora. Mas eu gosto de crianças. O segredo, portanto, não está em não ter filhos. Está em ter filhos tarde --e sair na altura certa: quando a criança se converte em adolescente. Ou, para os entendidos no assunto, quando a borboleta se converte em larva, quando a carroça se transforma em abóbora, quando o anjo vira Neandertal. Agüento uma criança que berra e baba. Não agüento um adolescente que berra como Enrique Iglesias e baba com Britney Spears. A adolescência é o purgatório da racionalidade: as hormonas chegam de viagem e expulsam os últimos neurônios a pontapé. No mundo perfeito, todo o pai teria direito a exportar seu filho adolescente e recebê-lo dez anos depois, com barba de homem, gravata posta e carreira feita. Impossível. Então, melhor morrer.

Não é crueldade, não: é altruísmo. Porque ter filhos tarde não é apenas bom para os pais. É também bom para os filhos. Não há nada mais embaraçoso para um adolescente do que pais com mentalidades de adolescentes. Vejo meus amigos e sofro por eles: o filho se comporta como membro da espécie e eles imitam o filho. Querem ser "amigos" dos mesmos amigos. Curtir os mesmos filmes. Fazer as mesmas viagens. Falar da mesma forma. E partilhar as mesmas experiências: a roupa, os discos, as bebidas. As namoradas. A prisão. Não admira que todo o adolescente genuíno deseje genuinamente que os pais desapareçam. De preferência, depois da mesada. Meus amigos choram e deprimem. Coitados, não percebem: quando o adolescente entra em palco, a peça vira monólogo. E a proteção dos primeiros anos se converte na prisão dos anos seguintes. Para quê sofrer? Chega de sofrimento. Para ambas as partes.

Ter filhos tarde liberta os pais dos filhos. E liberta os filhos dos pais. Combinação perfeita. Daqui a 50 anos, eu prometo contar como foi.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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