Pensata

João Pereira Coutinho

23/01/2006

As intermitências de Saramago

José Saramago é como a lua: tem fases. Existem romances que pertencem ao cânone de qualquer pessoa letrada. Nomes? "O Ano da Morte de Ricardo Reis", provavelmente um dos melhores livros da literatura contemporânea. E depois existem romances que pertencem ao cânone de qualquer pessoa iletrada. Nomes? "Todos os Nomes". E também "A Caverna". E também "Ensaio sobre a Lucidez".

Mas existe uma terceira espécie de prosa que Saramago produz de vez em quando: romances híbridos com partes brilhantes e partes dispensáveis. É o caso do último, "As Intermitências da Morte" (Cia. das Letras). As primeiras cem páginas prometem a melhor colheita de Saramago desde, no mínimo, "Ensaio sobre a Cegueira". As cem últimas são uma descida alucinante à banalidade. "As Intermitências da Morte" é, se quiserem, um romance intermitente.

Não tinha que ser assim. Mas foi assim. O problema de Saramago --o problema central de Saramago, e não apenas na malfadada segunda parte deste livro-- é a forma como cede facilmente ao clichê. Entendo que não é fácil manter um romance "humanista" e "universal" nos píncaros da genialidade filosófica. Saramago não é Borges. Saramago não é Kafka. E o Nobel, opinião pessoal, fez estragos desnecessários na cabeça do senhor. Saramago, muitas vezes, começa por ceder ao clichê na própria narrativa: as fórmulas repetem-se com entediante previsibilidade. E depois continua como clichê na pose e no tom: Saramago gosta de escrever com o dedo eriçado, um vício de quem leu abundantemente --e estilisticamente-- os pregadores lusos, a começar pelo Vieira dos sermões. Pena. O moralismo, em ficção, arrasa com a subtileza necessária: os grandes romancistas mostram, não dizem. Dizer é matar. Só a sugestão é a arma dos mestres. Exceto se.

Exato. Exceto se tudo for dito com autoconsciência plena e irônica, a piscadela cúmplice do autor ao leitor. Pois bem. Essa piscadela existe na primeira parte de "Intermitências" e Saramago evita o abismo do clichê porque joga com esse abismo. Os leitores portugueses, mais do que os brasileiros, percebem melhor grande parte das paródias que povoam a primeira parte. Exemplos? Quando a morte, personagem central, se ausenta do país e oferece uma ilusão de eternidade aos habitantes da terra, estes celebram o fato com uma euforia patriótica simplesmente ridícula: colocando bandeiras nacionais nas casas, nas varandas, nas janelas. Saramago não está a escrever sobre uma terra imaginária. Está a escrever sobre Portugal e os portugueses, que regularmente se entregam a estas práticas de nacionalismo hormonal. Aconteceu no recente campeonato da Europa de futebol.

Mas a guerra ao clichê não se fica pela crítica nacional. A ironia das primeiras cem páginas é delirante porque também é pessoal. Quando a morte reaparece em cena para escrever as suas cartas e avisar que está de volta ao serviço, ela usa uma "sintaxe caótica", a "ausência de pontos finais", uma "virgulação aos saltinhos" e a "intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula". Saramago, evidentemente, não está a escrever sobre a morte. Está a escrever sobre si próprio: sobre seus vícios de forma, que tanto incomodam os leitores filistinos.

Assim se resume a história das primeiras cem páginas. "No dia seguinte ninguém morreu". É o início do romance e, ao contrário do que a crítica especializada escreveu a respeito, não é uma ideia particularmente original. Uma humanidade finalmente livre da morte é recorrente na história da literatura utópica. Mais: um mundo de onde a morte se ausenta, trazendo alegria momentânea e caos imediato, faz parte do "cursus honorum" da ficção científica. Há uns anos, o escritor underground Terry Pratchett escreveu "Reaper Man", que fez as delícias dos fãs. Trama do livro? A morte deixa de matar e o caos instala-se em volta. Saramago leu Pratchett? Indiferente.

E indiferente porque a natureza impressiva de "As Intermitências da Morte" não está na originalidade do tema. Está no tratamento do tema e na capacidade, irregular em Saramago, de lidar com dois problemas -- melhor: dois paradoxos morais que fazem parte da nossa mobília mental. Todos sonhamos com um mundo de eternidade absoluta. Mas, ao mesmo tempo, todos afirmamos, com patética coragem, que a morte faz parte da vida. São os clichês com que embalamos nossas mágoas nos funerais das nossas rotinas.

A primeira parte do livro é também uma dança em torno desses dois clichês. A morte não mata, a morte mata outra vez. Saramago começa por mostrar como a ausência da morte não significa uma benesse para os vivos. Significa um inferno para os vivos --um estádio em suspenso onde as estruturas políticas, sociais ou religiosas entram em colapso. Saramago vai descrevendo esse colapso com a mesma graciosidade com que escreveu a alegria efémera. E quando a morte regressa depois das férias, enviando cartas às próximas vítimas e informando-as da hora fatal, o caos regressa também. Podemos estar todos no corredor da morte, afirma Saramago. Mas quando temos a data definitiva de nosso desaparecimento definitivo, tudo se converte em pó.

É então que o romance entra na segunda parte, ou seja, na sua rota descendente: quando uma das cartas é devolvida à procedência. A morte estranha. A morte insiste. A carta volta a regressar às suas mãos, recusando-se a levar a mensagem. A morte decide investigar quem é a criatura que não morre. E como? Humanizando-se, claro. No duplo sentido do termo: tomando forma humana, humanamente feminina. E partilhando dos mais basilares sentimentos humanos: paixão, compaixão. E, como nos piores filmes de Hollywod, o amor acontece.

Imagino: Saramago construiu as primeiras cem páginas e depois passou por uma locadora em Lanzarote, ilha espanhola onde vive. Alugou dois filmes --"Meet Joe Black" ("Encontro Marcado") e, provavelmente, "City of Angels" ("Cidade dos Anjos"), adaptação bem corny do filme de Wenders. E pensou que a resolução do livro estava no mais banal dos artifícios romanescos: a redenção da morte pelo amor, depois de sua humanização física. É Brad Pitt no feminino. Com final feliz.

Mas é mais do que isso: é permitir que dois livros convivam no mesmo livro. E que o segundo devore o primeiro. Entre a revolta e o pasmo, confesso que fechei o romance várias vezes durante uma noite insone. Fui resistindo à morte do livro, à morte da morte. Como uma criança que grita ao ser arrancada do ventre da mãe para a luz do mundo que cega cá fora. Não, José. E agora, José? Para onde, José?

Para lado nenhum, que em literatura é sempre o lugar do lugar-comum. "As Intermitências da Morte" não é simplesmente um livro falhado. É, coisa pior, um grande livro falhado. Acontece, sim. Mas, aqui entre nós, antes a morte que tal sorte.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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