Pensata

João Pereira Coutinho

06/02/2006

Morrer a rir

Há algo de podre no reino da Dinamarca? A julgar pelos últimos dias, parece que sim. Tudo porque um jornal local --o "Jyllands-Posten"-- publicou, em setembro de 2005, 12 desenhos com o profeta Maomé e a ligação do Islã ao terrorismo. A aventura foi copiada pela Noruega e, mais recentemente, por jornais de toda a Europa. Foi o princípio da loucura.

Tivemos uma embaixada dinamarquesa destruída no Oriente Médio. Bandeiras queimadas na "rua árabe", um clássico para todas as estações. Estudantes paquistaneses exigiram a morte da Dinamarca e a morte da França, um dos países que reproduziu a "blasfémia". Na faixa de Gaza, a sede da Comissão Européia foi atacada. Hotéis foram cercados na Cisjordânia. E o líder da facção governamental do Hezbollah, no Líbano, afirmou que tudo teria sido evitado se Salman Rushdie estivesse morto. Se me permitem, eu creio que as reações são ligeiramente exageradas: Rushdie é um escritor razoável e, além disso, "matar a Dinamarca" e "matar a França" é tarefa para vários anos. Melhor começar pela França e depois logo se vê. Mas, claro, eu não quero ofender ninguém com meus julgamentos apressados. Muito menos o Islã que, segundo me dizem, é uma religião de paz. Eu acredito.

Aliás, começo por esclarecer: os desenhos são maus. Maus? São medíocres. Se eu fosse diretor do jornal, jamais os publicaria. Não, obviamente, porque eles ofendem a "rua árabe". É difícil encontrar um hábito ocidental que não ofenda a "rua árabe". Eu presumo que, se a "rua árabe" me visse ao acordar, haveria mortos e feridos durante várias semanas. Mas porque os desenhos sofrem de um pecado capital: ausência de piada. Moamé com turbante em forma de bomba? Bocejo. Literal. Pedestre. E numa das charges, o profeta avisa os bombistas-suicidas para pararem seus atos porque não há mais virgens no "stock". Fraco, fraco. Melhor seria se as próprias virgens viessem apressar os bombistas porque o relógio-biológico (delas) está a apertar. "Depressa, Salim. Rebenta logo." Mas divago.

Acontece que este problema não é uma questão de gosto. E também não deveria ser uma questão de desgosto para os fanáticos. Eu não publicaria os desenhos no jornal da mesma forma que não exibiria a Virgem Maria coberta de fezes, que Chris Ofili, um débil que também é "artista", mostrou há uns anos. Não porque a obra de Ofili "ofende" o cristianismo. Mas porque a obra de Ofili, numa palavra, fede.

O problema é distinto. E resume-se numa simples, quase desnecessária, pergunta: devemos limitar a liberdade de expressão --e mesmo a liberdade de criticar e ofender e blasfemar-- porque isso incomoda uma minoria?

Eu julgava que esta pergunta se respondia a ela própria: toda a história da cultura ocidental é a história de uma longa ofensa a crenças ou valores que alguém, algures, cultiva na cabeça. Dante enfia Moamé num dos círculos do Inferno. Milton concede ao demónio papel fundamental na história da Criação. Woody Allen não pára de descer o pau sobre o judaísmo. Houellebecq critica o Islã, o judaísmo, o cristianismo --e ainda o ateísmo. É provável que um demente, ao ler "D. Quixote", se sinta ofendido no seu direito à demência. A única forma de não ofender ninguém passa por um mundo de silêncio absoluto, embora eu duvide que as aves, os rios, a chuva e o vento não acabem por destruir os nervos de uma criatura sensível. Pior: acabo de ler na BBC que, no Japão, um nabo gigante, entre a vida e a morte, está a comover os japoneses. Existem ligações televisivas à "clínica" onde o vegetal está a ser tratado por "especialistas", que depois emitem "boletins" sobre o estado do nabo. Não bastava a loucura vegetariana, que olha para os omníveros como seres infectos. Chegará o dia em que a própria existência de sopas ou saladas será considerada uma forma de genocídio.

Infelizmente, a Europa de hoje não pensa da mesma forma. O primeiro-ministro dinamarquês, depois de posição firme, começa a recuar perante a "pressão internacional". O ministro do Exterior da Noruega também e, num dos gestos mais ridículos dos últimos anos, viajou para o Líbano com o firme propósito de pedir desculpas. A quem? Mistério. A coroar o bolo, o jornal francês "France-Soir" resolveu demitir o seu editor-executivo, responsável pela publicação das imagens em França.

Isto não mostra apenas o triunfo do multiculturalismo no seu pior. Muito menos a nefanda interferência dos governos na liberdade de imprensa. Isto mostra, coisa diferente, o fim da Europa: o fim cultural e, obviamente, o fim demográfico que lhe está associado.

É um fato que o iluminismo continental do século 18, ao procurar adaptar os avanços das ciências naturais às sociedades humanas, produziu incontáveis excessos. A ideia de que a Razão (com maiúscula) basta para a formação de uma sociedade ideal, acabaria por abrir caminho para as piores experiências da história moderna. Mas o iluminismo teve um mérito: ao retirar Deus da praça pública, o movimento retirou também da instituição religiosa a palavra final --e fundamental-- numa sociedade laica.

A atitude da Europa, ao ajoelhar-se agora perante o fanatismo religioso, não é apenas um retrocesso civilizacional: é uma forma iníqua de permitir que a religião regresse ao espaço público pela porta das traseiras.

Mas este episódio revela mais. Revela as consequências de uma Europa que, demograficamente, está a morrer. Segundo as Nações Unidas, em 2050 é provável que a União Européia tenha perdido 20 milhões de almas (mínimo). Isto significa que a manutenção das estruturas económicas e sociais do continente vai exigir imigração maciça. A começar pela imigração islâmica, com população literalmente a explodir: no espaço de uma geração, o mundo islâmico terá mais gente do que os 25 membros da União Européia juntos. E a presença na Europa será marcante --ainda mais marcante do que a atual presença em França (10% da população) ou no Reino Unido (5%). A pergunta, uma vez mais, é simples: será que a Europa poderá continuar a ser um espaço livre com uma fatia da população crescentemente avessa à liberdade?

Não precisam responder.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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