Pensata

João Pereira Coutinho

20/02/2006

Terapia sueca

Aqui há uns anos, um grupo de feministas suecas lançou a moda: destruir todos os urinóis do país. Razão simples e, de certa forma, compreensível: os urinóis são uma evidência intolerável da soberba e da superioridade masculinas. Eles permitem que os homens urinem de pé quando, naturalmente, as mulheres urinam sentadas. Claro que, por experiência pessoal, posso garantir aos leitores que o improvável acontece: conheço casos em que os homens preferem sentar-se --facilita a leitura-- e as mulheres conseguem uma posição vertical, ou quase. Mas a doutrina é regular e a destruição também foi.

Lembrei as suecas do urinol por dois motivos. Primeiro, porque costumo pensar em suecas. E, depois, porque Pierre Pinoncelli foi condenado à prisão (com pena suspensa) e ao pagamento de 250 mil dólares de multa por fazer o que as suecas fizeram. A história é conhecida: numa tarde de sol, Pierre Pinoncelli, 77, resolveu entrar no Centro Georges Pompidou, em Paris, com uma idéia na cabeça e um martelo na mão. Idéia: destruir o urinol que Marcel Duchamp elevou à categoria de obra de arte. Segundo Pinoncelli, o ato de destruição não era simples vandalismo. Pelo contrário: era uma atitude artística e a única forma de aplicar a filosofia de Duchamp e dos primitivos dadaístas. Para Pinoncelli, era necessário recriar continuamente a obra de Duchamp, evitando assim a sua banalização "burguesa".

Escuso de dizer que Pinoncelli está certo. Certíssimo. Em 1916, quando um grupo simpático de artistas e boémios se reuniu no Cabaret Voltaire, de Zurique, o desafio era precisamente esse: será possível lançar uma nova forma de expressão artística capaz de enterrar a ordem burguesa que fatalmente levara a Europa para as trincheiras?

Tristan Tzara, Hugo Ball ou Hans Harp acharam que sim: o esgotamento da civilização era visível com os corpos que tombavam na frente. A arte deveria libertar-se da cultura miserável que conduzira ao massacre. Como? Pela subversão de todos os valores estabelecidos. Para usar as palavras de Bakunin, que os dadaístas liam, reliam e reproduziam, só a destruição permitia a verdadeira criação.

Marcel Duchamp concordou e aplicou a terapia. Citar Shakespeare ou arrotar - tudo é legítimo quando a guerra é o retrato mais ilegítimo da natureza humana. Um urinol - ou uma roda de bicicleta - vale precisamente o mesmo que um quadro de Cézanne.

Ao elevar o urinol a obra de arte, Duchamp aplicava o golpe definitivo na tradição artística ocidental: esvaziava o objecto de qualquer qualidade intrínseca, valorizando a "atitude" e o "contexto". Mas aplicava mais. Para sua enorme desgraça, e para nossa enorme desgraça, ele abria as portas para o dilúvio: conceptualismos de todos os géneros e feitios que se limitaram a repetir o gesto inicial, e terminal, de Duchamp. A anti-arte de Duchamp transformou-se, ironicamente, na forma mais consensual - e mais "burguesa" - de expressão artística. Duchamp queria acabar com toda a tradição. Azar: a anti-arte de Duchamp inaugurou e estabeleceu uma nova tradição. Até hoje.

Não admira que Pinoncelli, com plena lucidez, tenho entrado no Centro Georges Pompidou de martelo em punho. Se o urinol de Duchamp deve ser criado e recriado, por que não destruí-lo? E, já agora, por que não destruir a "Fonte" (no duplo sentido do termo) por onde brotou, e brota ainda, o abundante lixo que os "artistas" gostam de despejar nos museus das nossas cidades?

Sigamos Pinoncelli. Com o martelo na mão. E se você, caro leitor, não gosta de partir obras de arte por amor à Arte, tudo bem. Há sempre a possibilidade, mais pacífica e mais ecológica, de simplesmente urinar nelas.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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