Pensata

João Pereira Coutinho

06/03/2006

As boas noites de Brecht

Simpatizo com George Clooney. Existe ali a aura do cinema clássico e uma consciência "liberal" que, ao contrário de Michael Moore, não horroriza. Por isso assisto, com prazer moderado, a "Boa Noite e Boa Sorte", exercício acadêmico, em tom documental, sobre a luta entre Edward R. Murrow, o lendário jornalista da CBS, e o senador Joseph McCarthy, que entre 1950 e 1955 soltou os cães contra o comunismo na América. Curioso: em 1950, caçavam-se comunistas mas os fumantes eram deixados em paz. Sessenta anos depois, é o contrário. Evolução.

Esclarecimento prévio: caçar comunistas não é desporto de gente civilizada. Alger Hiss ou o casal Rosenberg eram a prova viva de que em 1950 a espionagem soviética existia e persistia nos Estados Unidos? É um fato. Como também é um fato que, em perspectiva, Washington perseguia os dissidentes mas Moscovo fuzilava-os. E daí? Nada disto altera o essencial. E o essencial foram centenas de vidas que um alcoólico demente, McCarthy, foi perseguindo, e até destruindo, com histérica ferocidade. Acabou mal e acabou cedo, aos 47 anos. Mas o mal maior já estava feito. Tarde demais.

Mas se Joseph McCarthy caçou comunistas na década de 50, não deixa de ser irónico que o caminho para McCarthy tenha contado com a "colaboração", no duplo sentido do termo, do dramaturgo Bertold Brecht, que em 1947 deu contributo decisivo para destruir a última barreira da decência. A história não é "oficial" e as consciências "liberais" nunca conviveram bem com ela. Ou, então, desconhecem os contornos. Sugestão bibliográfica: o livrinho magistral que a escritora Patricia Bosworth publicou há uns anos pela Simon & Schuster e que leio agora com admiração e pasmo. Título: "Anything Your Little Heart Desires". "Corny", sim. Mas a leitura é tudo menos.

Que nos conta Bosworth com erudição (muita) e elegância (idem)? O livro, que no essencial é uma história da família (mais precisamente sobre o pai, Bartley Crum, famoso advogado), revisita a primeira caçada em Hollywood, três anos antes de McCarthy chegar à Comissão das Atividades Anti-Americanas. A "ameaça vermelha" estaria disseminada pela indústria de cinema? Parnell Thomas, um antecessor de McCarthy, acreditava que sim. Aliás, não só acreditava como era firmemente assegurado a respeito por "testemunhas amigáveis", como Reagan, Disney ou Ayn Rand, que nomeavam nomes em sessões de delação pública.

Mas a Comissão não se alimentou apenas de "testemunhas amigáveis". O momento crucial desta primeira perseguição "mediática" acabaria por chegar com 19 testemunhas menos "amigáveis", ou mais propriamente "hostis", que seriam intimadas a depor perante Parnell Thomas. Entre elas estavam os diretores Edward Dmytryk, Lewis Milestone ou Robert Rossen; o ator Larry Parks, que fora Al Jolson em "biopic" célebre um ano antes; Howard Koch, um dos argumentistas de "Casablanca"; e, claro, Bertold Brecht, exilado nos Estados Unidos, depois da fuga da Alemanha nazista em 1933. Nasciam, enfim, os "Hollywood Nineteen".

Patricia Bosworth explica, com uma arrasadora simplicidade, que a estratégia de defesa dos 19, de que o pai fazia parte, se esforçou, desde o início, por denunciar a natureza inconstitucional da Comissão. Pergunta: Parnell Thomas desejava saber, como McCarthy depois dele, se os 19 eram, ou haviam sido, membros do Partido Comunista? Resposta da defesa: isso violava a Primeira Emenda, que garantia liberdade de expressão e crença. A única forma de derrotar Parnell Thomas era não responder às suas questões. O silêncio dos 19 retiraria à Comissão a sua legitimidade e, caso perdessem, o Supremo Tribunal, largamento dominado por uma sensibilidade mais "liberal", faria o resto. Os 19 subscreveram a estratégia da defesa: matar a Comissão logo à nascença.

Subscreveram e aplicaram. As dez primeiras testemunhas "hostis", como Dmytryk ou Ring Lardner Jr., foram ouvidas pela Comissão. Não colaboraram, ou seja, não responderam a uma pergunta eminentemente inconstitucional. Mas o desastre chegaria com Brecht, a décima primeira a ser ouvida. Ao contrário das dez testemunhas anteriores, Brecht colaborava e respondia, ou seja, destroçava a estratégia central da defesa. Mais: não apenas respondia como tratava de sublinhar, em plena audiência, a grande diferença que o separava dos 10 que o precederam.

Brecht saiu em aplausos (de Parnell Thomas) e, no dia seguinte, regressava à Europa. Conta o historiador Paul Johnson, num trabalho notável sobre a ética dos "intelectuais", que ao desembarcar em Paris o espirituoso Brecht ainda fez piada sobre o assunto. "Quando me acusaram de tentar roubar o Empire State Building", afirmou Bertold, "achei que era altura de partir". Todos riram.

Todos, com a excepção dos que ficaram em Washington. Na verdade, depois de Brecht, a Comissão resolveu terminar abruptamente os seus trabalhos. Os primeiros dez a ser ouvidos --como Ring Lardner Jr. ou o diretor Lester Cole-- acabariam condenados e presos. Mas essa é a parte "menor" da história. A parte maior é que as "listas negras" começavam em força. Precisamente com os primeiros dez, que a indústria resolveu sacrificar como exemplo. O caminho estava definitivamente aberto para que Joseph McCarthy inaugurasse um dos episódios mais grotescos da história moderna americana.

Como Patricia Bosworth escreve, a história da "caça às bruxas" é uma história com poucos heróis. Dmytryk ou Rossen, depois da experiência "hostil", acabariam por regressar como "testemunhas amigáveis"; Bartley Crum, advogado dos 19 e pai da autora, fez o mesmo ao denunciar colegas de ofício (Crum acabaria por se suicidar em 1959; as páginas de Bosworth sobre a delação do pai valem o livro); e aqueles que não acabaram na miséria, esconderam-se no anonimato. É o caso de Dalton Trumbo, que ganharia um óscar como "Robert Rich" (por "The Brave One", 1957) e só em 1960, por pressão de Otto Preminger e Stanley Kubrick, teria o seu nome real nos créditos de "Exodus" e "Spartacus".

E Bertold Brecht? Regressado à Europa, Brecht continuaria uma notável carreira em nome das classes exploradas, denunciando o "capitalismo" americano e a hipocrisia da sua sociedade "materialista". Na triste história da "caça às bruxas", as boas noites de Brecht simplesmente nunca existiram.

Ou, se existiram, desconfio que dificilmente veremos um filme de Clooney sobre o assunto.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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