Pensata

João Pereira Coutinho

20/03/2006

Cronistas

Os cronistas morrem com dignidade. Conheço vários. Art Buchwald é apenas o último moicano. Minto. Não sei se Buchwald morreu nos últimos dias, nas últimas horas, nos últimos minutos. Provavelmente. A situação é a seguinte: Art Buchwald, o lendário cronista do "Washington Post", está a morrer. Os rins deixaram de funcionar. E fazer diálise não é, como dizem os brasileiros, a praia de um cronista que se preze. Sofrimento e indignidade? Aos oitenta? Não, obrigado. Buchwald prefere esperar. Esperar, vírgula: fazer o que sempre fez durante cinquenta anos e ao longo de oito mil colunas. Escrever. Crônica diária, ou quase, sobre os dias do fim. A morte não nos torna mais sábios. Mas seria aconselhável que não nos tornasse mais medrosos. Nem heróis, nem cobardes. Normais. As crônicas de Buchwald são uma forma digna de manter a rotina. Leiam, aqui. Agora, não. Depois.

Porque agora é altura para dizer que Art Buchwald não é caso único. E os contornos desta morte --rins que dizem adeus, pernas amputadas pela doença, escolha consciente do fim-- obrigam-me a recuar. Aconteceu em 1997, quando morria, em Londres, Jeffrey Bernard (1932-1997). Opinião pessoal: considero Bernard o mais brilhante cronista das últimas décadas e estou a incluir no cardápio a prosa de Peter Simple, Auberon Waugh e do próprio Art Buchwald. Mas Bernard é outra história.

Aliás, Bernard foi outra história. Nasceu bem, ou razoavelmente bem, no seio de família com aspirações artísticas --mãe cantora, pai arquitecto-- e com sonhos respeitáveis para o filho. O filho tentou e falhou: a disciplina da vida militar era incompatível com a descoberta da Disneylândia. E a Disneylândia, para Bernard, foi o bairro boêmio de Londres, o Soho, onde entrou depois da Segunda Guerra e de onde, para sermos exatos, nunca mais saiu.

Fácil perceber porquê. O Soho era casa de vida e bebida para Dylan Thomas, que num dos bares deixou esquecido "Under Milk Wood", o último e definitivo dos seus trabalhos; por lá andavam, igualmente, os pintores Francis Bacon e Lucian Freud, que encontraram no Soho a fauna das suas artes; e ainda era possível ouvir o jazz de George Melly ou Ronnie Scott; assistir ao teatro de Brendan Behan; sem esquecer os lábios, e os olhos, de Lady Caroline Blackwood, que serviu de musa, e de tusa, para gerações sucessivas de vagabundos românticos.

Bernard foi observando. E bebendo. Muito, e muito, e muito. Começou por escrever sobre corridas de cavalos e toda a vida apostou em corridas de cavalos. Ganhou. Perdeu. Foi preso. Prostituto, ladrão. Mulheres, várias. Homens, alguns. Smirnoff, bastante. Mozart, também.

Mas o lendário Bernard acabaria por nascer com lendária coluna na revista inglesa "Spectator", corria 1975. A coluna, "Low Life", era simplesmente o relato da baixa vida de Bernard. Mulheres. Copos. O Soho e seus personagens. Casamentos. Divórcios. Mais casamentos e mais divórcios. E mais copos. Doenças. Delírios. Entrevistas imaginárias. Boxe. A amizade com Graham Greene. Copos novamente. Diabetes. Uma perna amputada. Natais solitários. A decisão de evitar a diálise (como Buchwald). A espera serena da morte. O próprio obituário, que ele escreveu antes de.

Só que a coluna de Bernard era mais do que isso: era uma visita guiada ao naufrágio de um ser humano sem o tom reles e ressentido de Charles Bukowski. Bernard, com a leveza de um dandy e a rudeza de um aristocrata, soube transformar esse naufrágio em algo de sublime: uma longa confissão, irónica e ironicamente terna, com breves paragens, ou passagens, pelo hospital. Quando os internamentos aconteciam, a coluna surgia em branco, com letras negras: "Jeffrey Bernard is Unwell" ("Jeffrey Bernard está doente"). Os leitores já sabiam: nas semanas seguintes, Bernard regressaria do hospital para contar como foi. Regressou sempre. Até ao dia em que as palavras clássicas foram substituídas por outras. "Jeffrey Bernard is Dead". Correu a cortina.

O que ficou? Ficou retrato na National Portrait Gallery: o único cronista em dez séculos de história. Ficou uma biografia de Graham Lord, "The Wives and Times of Jeffrey Bernard". Ficaram dois volumes de crónicas que deveriam ser obrigatórios para qualquer leitor ou cultor do género: "Low Life" e "Reach for the Ground". O primeiro tem prefácio, tolerável, de John Osborne. O segundo, deslumbrante, de Peter O'Toole, amigo de uma vida inteira, que vestiu Bernard nos palcos do Old Vic de Londres. Título da peça? Claro: "Jeffrey Bernard is Unwell". Eu assisti, mudo e quedo.

Aliás, eu assisto ainda: regresso a Bernard sempre que posso. A sua crónica "Trivial Pursuit" é uma das razões, provavelmente a principal razão, por que descobri a Disneylândia das rotativas. É a Capela Sistina do jornalismo e, acreditem, quem escreve assim tem a Capela Sistina no topo da cabeça. E regresso também ao Soho: entro no bar "Coach and Horses", na Greek Street, que foi a casa de Bernard durante anos, e as histórias ainda correm entre leitores, admiradores e herdeiros.

Como, aposto e garanto, irão correr sobre Buchwald, quando a luz se apagar e a coluna sair em branco. Brindo a ambos. Com esta coluna ainda cheia, e tão portuguesa, e tão brasileira.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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