Pensata

João Pereira Coutinho

03/04/2006

A vida como ela era

Não gosto de futebol. Melhor: deixei de gostar. Razões várias, que se resumem numa só: o futebol de que eu gostava não é o futebol de que hoje se gosta. Acontece. E, comigo, acontece sempre: a partida começa e, dez, quinze, vinte minutos depois, eu bocejo e adormeço. Quando acordo, a cortina correu há horas. Volto a adormecer sem sentimento de culpa.

E, no entanto, nem sempre foi assim. Nasci numa cidade do norte de Portugal e a minha equipa, desde o berço, foi repetidamente a mesma. O Porto, claro, e ainda hoje recordo a primeira Copa da Europa que o Porto trouxe para a cidade, depois de vitória (2-1) sobre o Bayern de Munique, da Alemanha. Teria dez anos. O primeiro gol foi de calcanhar, por jogador argelino, Madjer: um gesto tão absolutamente divino que habitou a imaginação de gerações sucessivas. Fecho os olhos e revejo tudo: Madjer, de costas para a baliza, sem tempo para virar. E a solução, tão simples que até comove, de chutar ao contrário. Deve ter sido o único gol na história do futebol português que não foi imediatamente festejado: dois ou três segundos de silêncio correram uma nação inteira, enquanto os neurônios se recompunham do choque e tentavam entender o que se passara lá longe. E depois chegou o segundo gol, de uma violência festiva, como se uma gazela tivesse entrado na área sem pedir licença a ninguém. A gazela, brasileira, chamava-se Juary. Que é feito desse Juary? Mistério.

Gostava de futebol porque o futebol era isso: uma confrontação dramática entre seres humanos mortais. Havia rasgos de gênio. Havia rasgos de gente medíocre. Havia sorte. Havia falta de sorte. E quando Maradona, em jogo célebre, resolveu marcar com a mão para mais tarde marcar com o pé (depois de driblar uma equipa inteira), eu agradeci a Deus pela mãozinha: a mentira daquele gol era mais verdadeira do que todos os lances limpos e verdadeiros que se acumulam na história da arte. Deus descera sobre o México e eu assistira ao milagre em direto.

Mais tarde fui recuando no tempo e encontrando outros tempos. Não vale a pena falar de Pelé. Nem de Garrincha. Nem de Eusébio, o português Eusébio, que não vi jogar mas vi chorar. Quando Portugal perdia as semi-finais em 1966, as imagens de Eusébio com a camisola a cobrir a cara --de tristeza, de vergonha, de dor-- sempre me pareceram uma reposição fiel da expulsão do Paraíso que Masaccio pintou seis séculos atrás.

Tudo mudou. Eu mudei. O futebol também. Ronaldinho Gaúcho é um gênio, como dizem? Não nego. Mas jogar futebol numa camisa-de-forças não é a minha idéia de futebol. O jogo tornou-se "científico". Os jogadores deixaram de ser seres humanos e, como todos os seres humanos, capazes de usar a liberdade para acertar, falhar e deixar que a sorte faça o resto. Nos minutos que antecedem o meu sono profundo, olho o jogo e não vejo gente: vejo peças de uma máquina. E eu não gosto de máquinas.

Mas o pior ainda está para vir. Segundo parece, a FIFA estuda a possibilidade séria de introduzir a eletrônica nos lances duvidosos. Uma bola que entra e não entra. Uma falta feia em plena área. Uma mão no sítio errado, na hora errada. E o árbitro, parando o jogo e consultando o vídeo, para tornar tudo mais rigoroso. Mais verdadeiro. Mais claro.

E mais chato. E mais previsível. E menos humano. Confesso que me é indiferente. Hoje, são vinte minutos de tolerância. Amanhã, será apenas a memória vaga de que existiu um jogo nobre e imperfeito. Um jogo caótico, injusto, apaixonado, que alimentava conversas de surdos na vida como ela era.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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