Pensata

João Pereira Coutinho

01/05/2006

Esquerda, direita, volver

Caro leitor: você é de esquerda ou de direita? Calma, não sou eu que pergunto. É Paul Johnson, historiador britânico, em artigo recente para a revista "Spectator". Explico: Johnson, o segundo sábio desse nome depois do primeiro Samuel com o mesmo nome, procura investigar qual foi o homem mais à direita na história da humanidade. Encontramos figuras clássicas, entre a política e as letras. Temos Charles X, o último Bourbon. Fernando de Nápoles. Ronald Reagan. Joseph de Maistre, o feroz anti-racionalista para quem a França revolucionária era a encarnação do diabo. E o bondoso C.S. Lewis, mais conhecido pelas suas histórias de "Narnia" e não tanto por suas opiniões políticas.

Mas o texto de Johnson criou certo "frisson" com afirmação que eu julgava consensual. Afirma Johnson que é um erro considerar Hitler como um representante da direita. Hitler, para além de criminoso e genocida, era estruturalmente um socialista. E porquê? Porque Hitler consegue furar as seis regras essenciais de qualquer conservador que se preze. Primeiro: a crença num Deus omnipotente e omnipresente. Segundo: uma moral absoluta como base de qualquer sistema legal. Terceiro: a defesa de um Estado mínimo, quer em extensão, quer em ambição. Quarto: o respeito por poderes tradicionais e tradicionalmente instituídos. Quinto: um certo controlo e autocontrolo de conduta. Sexto: a procura de um equilíbrio entre o indivíduo e o Estado.

Hitler, pelo contrário, faz o pleno: ateu, relativista, ultra-centralista, exibicionista e coletivista. Mais ainda: um conservador, para Johnson, tende a olhar para a força como o último recurso. Hitler olhava como o primeiro. Os leitores desabaram sobre Johnson. Não entendo porquê.

E não entendo porque Johnson está certo (sobre Hitler) e quase certo (sobre um conservador): não acho que a crença em Deus seja o primeiro critério de qualquer posição conservadora. Talvez seja válido para Burke, Coleridge e para os dois Johnson, Samuel e o próprio Paul. Mas o que dizer de David Hume ou mesmo Michael Oakeshott?

Seja como for, o artigo de Johnson, e a caracterização de Hitler, tem importância como exercício intelectual. Sobretudo ao confrontar a preguiça ideológica de quem olha o mundo a preto e branco, quando a discussão envolve "esquerda" e "direita" em luta mortal. Todos sabemos como começou essa luta. Em 1789, com a falange anti-monárquica à esquerda dos Estados Gerais, os termos «esquerda» e «direita» começaram por ser termos espaciais, definindo quem se se sentava onde em relação ao rei e aos seus ministros. Com o processo revolucionário francês, termos essencialmente espaciais evoluiram ideologicamente: a "esquerda" passaria a representar a mudança, o desejo de mudança, sobretudo contra os privilégios aristocráticos ou eclesiásticos estabelecidos. A "direita" surgia como a defensora da ordem, da conservação --ou, em linguagem ainda mais simplória, apoiante da "reação". Claro que, em termos reais, as classificações valem o que valem.

Valem o que valem ainda durante a Revolução Francesa: Burke pode ser o primeiro dos conservadores modernos na sua oposição a 1789. Mas Burke foi também um tenaz defensor dos colonos americanos, um crítico de George III e um inimigo mortal da administração colonial na India. Uma carreira política profundamente reformista --na economia, na administração, nas colónias-- não se apaga da noite para o dia.

Mudança ou conservação têm validade relativa. Como tem validade relativa o monopólio da "esquerda" no amor aos mais pobres e desvalidos. A emergência de um Estado Social, capaz de proteger os indivíduos no desemprego, na velhice ou na reforma, contou com contributos decisivos de Disraeli, na Inglaterra, ou mesmo de Bismarck, na Alemanha. Disraeli ou Bismarck não eram propriamente de "esquerda". Ou eram?

Sem falar dos dias que passam. O caso mais extremo pertence, adivinharam, ao maléfico George Bush. Dizem que Bush é de direita (a minoria) e de extrema-direita (a maioria). Mas será mesmo? Se perguntarem a uma parte crescente da "direita" americana, de formação mais "libertária", Bush é um inimigo e um traidor. Para começar, ele se opôs à tradição anti-Roosevelt, defensora de um estado mínimo na extensão e no gasto. Isso, cuidado, se estivermos a falar do Roosevelt pós-1932. Porque o Roosevelt pré-1932, na melhor tradição Jefferson, poderia alinhar pacificamente com a "direita" libertária de hoje. Mas não vamos confundir mais as coisas.

E em política externa? Como explicar o Iraque e o Afeganistão? Uma parte da "direita" americana, de tradição "realista" e "isolacionista", não perdoa o universalismo de Bush na busca da Democracia e do Bem. Isso é coisa de Woodrow Wilson, dizem. Ou, pior ainda, de Trotsky. Não de um "direitista" de verdade. Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria dizer, ou acusar, que o "esquerdista" Blair saltou para o barco do "direitista" Bush. Mas, pergunto, será Blair realmente de "esquerda"?

Chega. Melhor ficar por aqui. Ou, então, simplesmente afirmar: "esquerda" ou "direita" perdem alguma da sua autoridade absoluta em confronto com a realidade da história.

Isso não significa que não existam diferenças. E profundas. Existem, sim, e a lista de Paul Johnson é um ótimo começo para qualquer um se situar. Mas desconfio que essas diferenças não podem ser resumidas definitivamente num cardápio ideológico, pronto para ser consumido por fanáticos esfomeados. Esfomeados e, claro, vindos de ambos os lados.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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