Pensata

João Pereira Coutinho

29/05/2006

A bola é quadrada

Se um extraterrestre aterrasse com a sua nave em Portugal, ele ficaria compreensivelmente em estado de choque: o país está a preparar-se para a Copa do Mundo mas, com toda a certeza, o país já sabe que vai ganhar a Copa do Mundo. Não conheço um único português que duvide, por momentos que seja, dessa absoluta e luminosa certeza. Falo de gente aparentemente racional e sem sinais exteriores de demência.

Melhor: existem até filmes publicitários em que os jogadores da Selecção Nacional --os famosos Figo, Deco ou Cristiano Ronaldo-- ostentam o troféu pelas ruas de Lisboa e o povo, coberto de vermelho e verde, aplaude os heróis que, para falar a verdade, só no dia 11 de junho irão entrar em campo. A primeira vez que assisti ao filme, confesso que ri. Depois sorri. Hoje sei que o meu país está a enlouquecer e eu não posso fazer nada.

Bom, poder, até posso. Mas será que vale a pena? Será que vale a pena falar um pouco da --palavra feia, eu sei-- "realidade"? Continuem imaginando o extraterrestre. E agora imaginem que o extraterrestre perguntava, quase por ingenuidade, quantas Copas do Mundo Portugal já venceu. Os festejos esmoreciam subitamente. As bandeiras perdiam a cor. E talvez o povo acordasse da anestesia geral. Na história das Copas, Portugal não tem passado, Portugal não tem presente. E, sobre o futuro, enfim, digamos apenas isto: é tão certo Portugal ser campeão do mundo como eu mudar de sexo e ir morar para Bagdad. Não, exagero. É mais provável eu mudar de sexo e partir para o Iraque.

Mas existem milagres, claro. Na última Copa da Europa, Portugal chegou na final e, duplo milagre, foi derrotado pela Grécia. Informação: a Grécia não estará presente na Copa do Mundo porque, nos jogos de qualificação, perdeu com a Albânia. Mas se começarmos pelo passado, o cenário é dramático, ou cómico, dependendo da perspetiva. Em 17 Copas, Portugal esteve presente em 3. Eu escrevo por extenso: três. A primeira, em 1966, foi sem dúvida alguma a melhor: um terceiro lugar honroso com Eusébio na equipa e, mil perdões, a eliminação do Brasil. As duas restantes participações dos lusos tiveram, no mínimo, o seu interesse.

Do ponto de vista criminal, entendam. Em 1986, no México, os jogadores perderam com a Polônia, foram goleados por Marrocos (não é piada) e resolveram fazer greve se os prémios de jogo não fosse "renegociados". Uma originalidade na história do futebol, que o país não esqueceu, nem deve. E, em 2002, no Oriente, a seleção deixou a chantagem e partiu diretamente para a agressão. Infelizmente, o ato foi cometido sobre o próprio árbitro, esmurrado no último jogo de Portugal (contra a Coreia do Sul, que perdémos, depois de outra derrota com os Estados Unidos).

Alguns leitores dirão, certamente, que estou a ser cínico e até cruel. Por favor, não é hora de elogios. E Portugal não é caso único. Em termos internacionais, estamos ao nível da Turquia. Da Croácia. Competimos diretamente com os Camarões. A única diferença é que a Turquia ou os Camarões não enfiam na cabeça que serão campeões do mundo, exceto por motivos simplesmente humorísticos, o que é saudável. E nunca, nunca, nunca transformam a vida comunitária num inferno de fanatismo infundado: recentemente, Luiz Filipe Scolari pediu aos portugueses para pintarem o nome dos jogadores da Selecção Nacional nas praças das suas cidades e vilas de origem. Somos assim: vivemos três ou quatro meses de euforia louca. Quando a Copa começa, abram alas, nós já estamos regressando.

Então imagino o Brasil: em 17 Copas, 17 presenças. E, em 17 presenças, sete finais e cinco copas. Se Portugal, por hipótese académica, tivesse um currículo igual, seria literalmente impossível viver em Lisboa. Sem uma Copa, somos vencedores virtuais. Com cinco, já estaríamos marchando sobre a Polónia.

A culpa, no fundo, é da incompetência de nosso d. João VI. Tivesse havido união definitiva entre Lisboa e o Rio de Janeiro e o grande Reino de Portugal e do Brasil seria imbatível na história do desporto. Que é como quem diz: Ronaldinho Gaúcho marcava os gols e nós fazíamos os filmes publicitários.

Com destinos separados, o filme será outro: dia 11 jogamos contra Angola; dia 17 contra o Irã; dia 21 contra o México; e, se a tradição ainda tem algum valor, dia 22 estaremos de volta à Pátria, sonhando e até festejando com a Copa de 2010. Mas não estaremos sozinhos. Escondido na bagagem, aposto que iremos trazer um árbitro bem esmurrado para mostrar.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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