Pensata

João Pereira Coutinho

10/07/2006

Futebol, sexo e milagres

27 de Junho

Adoro adolescentes. Há vários anos que defendo uma terra só para eles. Imaginem: os 12 anos chegavam, os pais podiam despedir-se dos filhos no cais da partida. E eles iriam, alegres e obviamente alienados, para esse reino exclusivo: uma espécie de ilha distante de onde regressariam aos 20 ou 21, já adultos e com hábitos de higiene plenamente assimilados. Infelizmente, as minhas utopias não se realizam. Mas existem sinais de esperança. Leio agora que adolescentes britânicos criaram um toque de celular para enganar os adultos. Como funciona? Simples: eles vão à internet, fazem download do toque --chamado "Mosquitone"-- e podem receber chamadas sem ninguém notar. Sem ninguém notar? Touché: parece que aos 30 anos os adultos começam a perder capacidade auditiva. Crime perfeito: o "Mosquitone" emite sinal numa freqüência de 17 kilohertz -- um ultra-som excessivamente agudo que só os adolescentes, e provavelmente os cães, são capazes de escutar. Claro que a ciência ainda não inventou um mecanismo qualquer que permita aos adolescentes falar, gritar e até existir sem que os adultos notem a presença. Mas, como diria o poeta, um começo é um começo é um começo.

30 de Junho

Janto no Estoril, terra simpática perto de Lisboa. A meio do jantar, metade da sala se levanta e desaparece do radar. Que se passa? Dizem-me que a França acabou de marcar gol e o Brasil está a trinta minutos de deixar a Copa. Entendo o drama. Antes, muito antes da equipe portuguesa voltar ao mundo dos vivos, o Brasil era a equipe de qualquer português. Recordo o meu pai, em 1986, de joelhos na sala, quando Zico chutou a bola para defesa de Bats. Uma derrota do Brasil era uma derrota de Portugal. De certa forma, ainda é.

Meia hora depois, os fugitivos regressam à sala, com a desolação no rosto. O Brasil já era. Eu próprio recebo mensagem no celular de amiga paulistana, que deu entrada nas urgências hospitalares. "Conta minha história ao mundo. Adeus. S." Curiosa esta conversão das mulheres ao fenômeno desportivo. Curiosa, mas inevitável: com a crescente efeminização dos machos, visível em qualquer revista da especialidade, cabe às mulheres ocupar o espaço anteriormente habitado pelos homens. Tenho amigas que deixaram crescer bigode só para calar a vizinhança: duas mulheres na mesma casa não era coisa bonita, diziam.

Pessoalmente, a eliminação do Brasil nunca me espantou. E nunca me espantou porque há vários anos que alimento teoria pessoal sobre o fenômeno futebolístico: uma equipe é o prolongamento natural do técnico na intimidade. Técnicos apaixonados na cama tendem a incutir nos atletas uma vontade orgástica de marcar. A frouxidão, pelo contrário, acaba por contaminar todo o grupo e os resultados não são animadores.

Felipão é um caso: batalhador, sim, mas as opções táticas são nitidamente conservadoras, o que não espanta num homem casado há vários anos com a mesma mulher. Resulta, e Portugal conseguiu chegar às meias, mas às vezes a rotina cansa. E pode fracassar: um adversário que adivinha os movimentos do amante acaba também por lhe negar o prazer.

Eriksson é visivelmente um D. Juan: conseguir transformar uma equipe frígida, como a inglesa, numa donzela voluptuosa, que se abre a um futebol de imaginação, é a marca indesmentível de um homem que aposta tudo nas preliminares. Nem sempre resulta? Pois não: existe o perigo de um certo esgotamento quando chega a altura de marcar.

Mas nada de exageros. Klinsmann, por exemplo, é o inverso: a expressão visível de um homem ansioso, que sacrifica as carícias do jogo pela vontade imediata de atacar.

O ideal, portanto, é o equilíbrio possível entre a sedução do adversário, alguns afagos para animar a torcida e eficácia no momento do remate. Pessoalmente, só Marcello Lippi, italiano, parece revelar as qualidades românticas essenciais. O futuro dirá.

5 de Julho

Dias estranhos. Leio a imprensa ocidental e questiono os meus neurônios se estarei a enlouquecer. De acordo com os relatos "imparciais" que se produzem deste lado do Atlântico, Israel resolveu entrar em Gaza, com violência e crueldade, porque o imperialismo de Tel Aviv nunca abandonou os judeus mais açougueiros. É uma forma de ver as coisas.

Outra, ligeiramente mais pessoal, é tentar entender as causas reais, e não imaginárias, que levaram a nova invasão de Gaza. Se a minha lucidez não me abandonou, desde que Israel resolveu retirar unilateralmente - em Agosto de 2005 - Gaza transformou-se no perfeito exemplo do caos e do terror, reforçado pela chegada do Hamas ao poder. Para alguns, o Hamas será uma organização benemérita, disposta a construir um estado palestino livre, democrático e amigo do ambiente. É uma forma de ver as coisas.

Outra, ligeiramente mais pessoal, é talvez dizer que o Hamas não é uma organização benemérita e, supremo ultraje, não reconhece a existência história de Israel, não aceita acordos passados entre Israel e a Autoridade Palestina e deseja destruir o vizinho do lado com o lançamento, praticamente diário e praticamente desde a retirada de Agosto, de mísseis Qassam, o que não me parece uma atitude civilizada. Aliás, não me parece atitude civilizada o rapto de soldados israelitas, exceto se o Hamas sente saudades deles: desde a retirada que não existe presença militar israelita em Gaza e nem isso impediu que a "luta de libertação" continuasse.

Equivocado? Estarei. Mas lançar mísseis e efetuar raptos salteados não me parece a melhor forma de conseguir uma vizinhança tranqüila.

7 de Julho

Deus meu: não é simplesmente encantador que Zinedine Zidane, com 67 anos [o jogador tem 34], tenha enviado a equipe portuguesa para casa? Portugal jogou mal --sofrido, sofrido-- e a França não jogou melhor. Mas a minha simpatia pelo sexagenário Zidane aumentou nos últimos tempos quando soube que:

a) Jean-Marie Le Pen, líder da extrema-direita gaulesa, voltou a criticar a França por não ser suficientemente branca;

b) a imprensa desportiva, pateticamente mergulhada na "cultura da juventude", não perdoa os 67 anos de Zidane;

c) Zidane fuma.

Sim, talvez vocês não tenham lido a respeito; mas o "The Guardian" fotografou o jogador em pleno vício. Aliás, não apenas Zizou, mas também o goleiro Barthez e, esperança minha, a equipe inteira. Imagino os vestiários da França: uma cortina de fumo no intervalo das partidas e os jogadores, pedindo cigarros uns aos outros, só para carregar energias. Pena que a fábrica dos "Gitanes", essa esplendorosa instituição francesa, não patrocine uma equipe que avidamente os consome. Seria um belo gesto de liberdade para calar os múltiplos fanáticos que, incapazes de chutar numa bola, gostam de vender saúde aos outros. "Allez les Bleus!"

9 de Julho

É o Everest da minha carreira. Nobel? Pulitzer? Academia Brasileira de Letras? Nada disso. Eu, João Pereira Coutinho, 30 anos, colunista há praticamente dez, recebi pela primeira vez o e-mail de um sacerdote brasileiro, católico, que me envia sua benção. Li a mensagem e senti uma coluna de luz a descer sobre a minha cabeça humilde --e os anjos cantando, cantando. Deus existe. Já recebi de tudo. Declarações de amor. Pedidos de casamento. Ameaças de morte. Tudo da mesma pessoa. Fisicamente falando, recebo petiscos tradicionais, comida caseira, veneno, normalmente confeccionados juntos. Também recebi lingerie, que experimentei, sem sucesso: o gosto pelo fio dental é, provavelmente, o maior mistério da criação humana. Mas uma benção cibernauta, e um elogio do Altíssimo, é coisa que pode transformar qualquer um. Lembro Samuel L. Jackson, em "Pulp Fiction", depois de sobreviver à morte certa: decidido a mudar de vida, trocando o crime pela errância, ou pela pregação. Não vou tão longe. Mas prometo que, daqui em diante, tenciono elogiar (por ordem alfabética):

Adolescentes
Bertold Brecht
Bono (e os U2)
"Cidade de Deus " (o filme)
Cotas raciais
David Beckham (e a mulher)
Fidel Castro
Guitarras elétricas (e músicos respectivos, sobretudo Santana)
Hambúrgueres
Hugo Chávez (e a "revolução bolivariana")
José Saramago
Livros de Marketing e Publicidade
Madonna
Marlon Brando (como "o maior ator da história")
Marrocos
Oliver Stone (os filmes)
Noam Chomsky (a lucidez)
Salvador Dalí (a incomparável pintura)
Subdesenvolvimento
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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