Pensata

João Pereira Coutinho

21/08/2006

A dupla morte de Stefan Zweig

Existem esquecimentos imperdoáveis: leio o "The New York Review of Books" e encontro ensaio de Joan Acocella. Sobre Stefan Zweig. Quem? Precisamente. Zweig é hoje uma relíquia literária, própria de colecionadores. Injusto, claro. Nasceu em Viena, corria 1881. Faleceu em 1942, no exílio brasileiro, suicidando-se com a mulher em Petrópolis. Mas, para um autor abundantemente lido e respeitado na primeira metade do século 20, a pior morte foi a segunda. A pior morte é sempre a segunda. Quem, hoje, lê ou relê Zweig?

Joan Acocella tem alguma razão: Zweig nasceu no ano errado. Como, de certa forma, o inultrapassável P.G. Woodehouse. Falo de 1881. O ano de James Joyce, Virginia Woolf, Pablo Picasso. O ano em que os modernistas chegavam ao mundo, prontos para transformar radicalmente a herança clássica, leia-se "burguesa", do século 19. Zweig manteve-se: na narrativa, no tom, no "gravitas" tipicamente Mitteleuropa, um estranho no seu século estranho. Lido por milhões? Traduzido em todas as línguas possíveis ou imagináveis? A crítica "highbrow" não se comove com o fato. Literatura não é matemática.

Sim, não é. Mas o esquecimento de Zweig também não será propriamente virtude. Acocella lembra "Beware of Pity", o romance agora relançado nos Estados Unidos e que me rachou a cabeça ao meio pela subtileza do tema: um jovem soldado envolve-se romanticamente com Edith, uma donzela caprichosa e fisicamente mutilada. Envolve-se por pena. Por compaixão. Ou, como diria o poeta, por gentileza. E, também por gentileza, acabará por perder a vida: a vida de Edith e, de certa forma, a sua própria também. A história é convencional, na estrutura e no tom. Não é convencional ao revelar como o amor do soldado existe sobretudo como amor de si próprio. Como amor da sua própria piedade: porque na compaixão pelos outros existe, às vezes e tantas vezes, o sentimento de superioridade pessoal, e moral, que envenena e destrói os seres humanos. Kant, antes de Zweig, explicara.

Zweig também explica. Não apenas nos romances, que me parecem a parte menor da sua obra. Essa pessoal atenção às contradições humanas, à matéria frágil com que somos feitos e desfeitos, encontra-se sobretudo num texto autobiográfico que, se me permitem o excesso, talvez só seja comparável às memórias de Alexander Herzen, um século antes. Desconheço se "O Mundo de Ontem - Recordações de um Europeu" está disponível no Brasil. Sei que está disponível em Portugal, pela editora Assírio & Alvim, de Lisboa.

Seria um abuso, e uma pretensão insana, resumir as memórias de Zweig, escritas no exílio, com a Europa em ruínas e pouco antes da sua aniquilação pessoal. Dizer, como usualmente se diz, que as memórias de Zweig são um catálogo "interessante" de nomes, memórias, confissões, com limitado interesse contemporâneo, é dizer coisa nenhuma. Sim, Zweig conheceu toda a gente que era gente: trabalhou com Theodor Herzl, foi amigo de Rilke, Freud ou Rolland. Mas as memórias são mais do que enumeração onomástica: nas palavras de Zweig encontramos sobretudo o testemunho de uma personalidade invulgarmente reservada e cosmopolita, que se vê subitamente devorada pela história: condenada a construir, e a reconstruir, como um náufrago contra a maré, um espaço de segurança e liberdade que o século 20, hélas!, não lhe permite.

Em "O Mundo de Ontem" encontramos a oposição de dois mundos: o mundo anterior a 1914, tomado ainda por um otimismo gentil; e o outro, que infernalmente se lhe seguiu. Zweig nasceu no crepúsculo de uma era civilizada. E por civilizada pretende dizer-se precisamente isso: uma era que tinha pela cultura um relação necessária e vital. E que acreditava, erradamente, que a cultura seria a barreira contra a barbárie.

Não foi. Nunca foi. A Primeira Guerra acabaria por ser o primeiro passo para a Segunda. E o que impressiona em Zweig são as descrições dos momentos intermédios: desses momentos de transição em que a luz se vai lentamente ofuscando. Tudo isso é dito, e escrito, com uma força pessoal que dificilmente se esquece. Quando a Primeira Guerra desaba sobre a Europa, lemos (e vemos) Zweig, num jardim de Viena, com um livro nas mãos e uma orquestra que toca ao fundo. Subitamente, a orquestra pára. A leitura também. Uma brisa gélida, real ou imaginária, sacode as árvores que ofereciam a protecção de uma sombra. Francisco Ferdinando, o herdeiro do trono austríaco, era assassinado em Sarajevo. Nessa suspensão da normalidade está já escrito, e inscrito, todo o destino da Europa.

A Primeiro Guerra, ao contrário do otimismo irracional do tempo, não terminou com todas as guerras. Muito menos com a natureza fantasmagórica que, depois de 1914, estaria sempre presente na vida de Zweig: a consciência do pouco que somos e temos quando o mundo conspira --sempre e sempre e sempre-- para destruir as nossas últimas ilusões.

E Zweig teve uma última ilusão. Mais propriamente no Brasil, onde se exilou. "O país do futuro", como disse e escreveu? Sem dúvida. Mas essa frase, na sua generosidade simples, e tantas vezes ridicularizada por boçais, revelava um aspecto mais trágico: ao falar do futuro, Zweig já não falava do seu próprio futuro. Falava apenas das gerações que acabariam por vir: gerações que seriam capazes de habitar a natureza física e humana do Brasil sem que o ódio racial, e ideológico, pudesse mergulhá-las nas chamas que consumiam a Europa. Que consumiam a sua pátria, a sua língua. O seu passado. Nem mais. Ao deixar o futuro para o Brasil, Zweig despedia-se do Brasil. Porque os homens carregados de passado acabam sempre por voltar ao local de todas as partidas.

João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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