Pensata

João Pereira Coutinho

30/10/2006

Vamos fugir?

Vou contar uma história. Em 1998, o saudoso Osama bin Laden afirmava duas ou três coisas que, pelos vistos, ninguém escutou. Mas eu relembro: com uma certa inteligência perversa, típica de um terrorista profissional, Osama afirmava que a história dos últimos anos só comprovava a decadente fraqueza do exército americano. Os "americanos", dizia Osama, são ótimos nas "Guerras Frias". Mas quando a coisa aquece, eles fogem apressadamente das "Guerras Quentes". Foi assim em Beirute, ilustrou Osama. Foi assim na Somália, acrescentava Osama. Será sempre assim, concluía Osama, que três anos depois iria rebentar nos noticiários com os atentados em Nova York e Washington.

Beirute. Somália. Ainda lembram? Eu lembro. Em Outubro de 1983, um certo grupo chamado Hizbollah, que os débeis adoram e até defendem, chacinava em operação suicida 240 soldados americanos (e 58 franceses) estacionados no Líbano. Resultado: a "decadente" América fez as malas e, com o rabo entre as pernas, deixou o país entregue ao seu destino.

O mesmo na Somália, desta vez com pormenor relevante: os corpos dos soldados americanos arrastados pelas ruas da capital eram a ilustração poderosa de que a fraqueza da América seria a sua sepultura.

Os anos passaram. Outros anos vieram. E, hoje, com a curta memória do tempo, parece que poucos estão interessados em relembrar as admiráveis consequências da fuga às dificuldades. A começar pelos Estados Unidos, que deveriam ser os últimos a ter quaisquer ilusões: o 11 de setembro, ao contrário do que se diz, não foi o início de nada. Foi apenas o "grand finale" de uma campanha agressiva e progressiva, só possível pelo constante recuo de Washington quando os seus inimigos avançavam. E, claro, por cada recuo, os inimigos avançaram sempre.

Mas ainda que as ilusões abundem na casa da América, bastaria olhar para fora. Para o parceiro no Oriente Médio. Israel retirou do Líbano. Israel retirou de Gaza. Objetivo: trocar terra por paz e segurança.

Azar. Trocar terra por paz e segurança, como Chamberlain acreditava na década de 30, não faz necessariamente parar uma besta esfomeada. Antes pelo contrário. A besta vai desejar sempre mais e mais e mais.

É importante contar estas histórias quando, dos dois lados do Atlântico, os Estados Unidos e o Reino Unido querem menos e menos e menos. Menos homens no Iraque. Menos participação no Iraque. Menos comprometimento na pacificação do Iraque. Em poucas palavras, fazer as malas e fugir.

No Reino Unido, 45% dos nativos exigem a retirada das tropas no mais breve espaço de tempo. Pior: a posição é partilhada pelo chefe do exército britânico, Sir Richard Dannatt, que publicamente confessou o fato. Eu, na minha inocência, acho ligeiramente aberrante que o chefe do exército britânico disserte alegremente sobre áreas da exclusiva competência do governo.

Sou lobo solitário. Os aplausos domésticos foram fartos à «coragem» e à "clarividência" do homem. "Fugir" é agora "hit" nas tabelas políticas de Sua Majestade.

Mas é dos Estados Unidos que vêm notícias edificantes. Com eleições intercalares no calendário, o extraordinário George W. Bush resolveu conceder que "Iraque" e "Vietnã" não são mundos distantes. Eu, na minha inocência, acho a visão simplória, para não dizer ignara.

Solitário lobo sou. As palavras de Bush foram reforçadas pelo ressuscitado James Baker. O sr. Baker, secretário de Estado de Bush (pai), resolveu regressar ao mundo dos vivos para, entre outras excentricidades, aconselhar a divisão do Iraque em três fatias (curda, sunita, xiita, ou seja, a guerra civil total, com um mini-estado da Al-Qaeda no centro) e, além disso, envolver a Síria e o Irã no processo. O sr. Baker, que em 1991 cometeu a proeza de aconselhar a não remoção de Saddam Hussein do poder (mais um exemplo da determinação ocidental, que Osama aprecia), está convencido que a Síria e o Irã são "parceiros" credíveis e necessários.

É evidente que nenhum observador racional pode sorrir com as matanças no Iraque: 3.500 iraquianos no verão passado; 90 soldados americanos só no mês que hoje termina; uma violência sectária que contamina o centro e o sul e que, palavras do jornalista Bob Woodward, provocam atentados de 15 em 15 minutos (uma média de 100 por dia).

Mas "retirar" do país, sem garantir o monopólio da violência por um Estado digno desse nome, não significa apenas entregar o Iraque à guerra civil e à progressiva "talibanização" do Oriente Médio.

Como em Beirute; como na Somália; como no Líbano; como em Gaza --por cada recuo, haverá um avanço. Por cada recuo, uma mensagem para o terrorismo islamita que avança: a mensagem de que a fraqueza do Ocidente é total; e a rendição, absoluta.

Bush? Blair? Armas de destruição maciça? Mil desculpas: o problema já não está em concordar, ou discordar, com a invasão do Iraque e as políticas do diabólico sr. Bush. A questão está em saber se, amanhã ou depois, desejamos acordar com dois aviões instalados na sala.

Porque as fugas pagam-se caro. E só não aprende quem não quer aprender.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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