Pensata

João Pereira Coutinho

21/02/2005

Crimes e castigos

10 de fevereiro

S. PAULO
- A Folha publica, e muito bem, duas cartas sobre coluna passada ("Lauren Bacall, por favor"). O tabaco, o tabaco, sempre o tabaco. O mais interessante é que, se a memória não me abandona, eu próprio respondi oportunamente a ambos os leitores. Não foi suficiente. Repito o que disse com um sorriso nos lábios.

Mônica Mulser Parada, Coordenadora do Programa de Controle do Tabagismo da Vigilância Sanitária do Distrito Federal (o cargo deve ser importante; trinta e quatro sílabas) começa por me acusar de ignorância atroz sobre Robert Proctor, autor do citado "The Nazi War On Cancer". Lamento informar Mônica e sua turma do Programa de Controle do Tabagismo e-vocês-sabem-o-resto: conheço Proctor, professor de História da Ciência da Universidade da Pensilvânia e, mais, sei que falo de investigador sério --provavelmente um dos mais sérios na área. E, não, nunca procuraria negar o contributo de Proctor: ele demonstra que os nazistas foram fundamentais nas descobertas sobre os malefícios do fumo. Mas meu texto começava por falar de campanhas, não de malefícios.

Por isso sugiro a Mônica Mulser Parada, Coordenadora do Programa de Controle do Tabagismo e-vocês-sabem-o-resto para consultar a referida obra de Proctor, páginas 173 a 247, capítulo 6, intitulado "The Campaign Against Tobacco". A idéia é simples e devastadora: as campanhas modernas que atualmente correm nas ruas (no Brasil, no México, na Europa) encontram inspiração direta nas campanhas nazistas das décadas de 1930 e 1940. E o objetivo é comum: retratar o fumante como ser inferior, doentio, moral e sexualmente arruinado. Se esta idéia de "eugenia social" e humilhação pública é desconfortável, o problema não é meu. É de Mônica Mulser Parada. Seria da mais elementar prudência que, muito antes de ameaçar com processos judiciais sem pés nem cabeça, Mônica Mulser Parada começasse por enfrentar as origens históricas e conseqüências morais daquilo em que acredita.

Paulo César Correa, da Rede Tabaco Zero (bravo: sete sílabas) solicita documentos para comprovar minhas afirmações. Paulo César Correa não leu o artigo e, visivelmente, não leu Robert Proctor. Mas depois, num passo que fatalmente define o ato, Paulo César quer saber se eu ganho dinheiro com meus textos tabagistas. Melhor: se as indústrias de fumo pagam para eu passar minha mensagem. A interrogação de Paulo César é importante. E importante porque mostra, não apenas o mundo conspirativo onde ele vive mas, sobretudo, a superioridade moral que ele acredita ser sua. Vejamos: na cabeça de Paulo César Correa, só as patrulhas anti-fumo merecem credibilidade; as patrulhas anti-fumo são puras e virginais porque acreditam na realização terrena de uma utopia higiênica. Os outros --os fumantes-- são seres viciosos, que recebem dinheiro de entidades demoníacas para espalhar seus pecados. Na imaginação de Paulo César, eu vivo em mansão com piscina, servido por dois ou três escravos sem pulmões, que trabalham a troco de cigarros. Não vale a pena perder um minuto de tempo com esta fabricação mental, que obviamente merece outro tipo de tratamento.

Digo apenas: percebo que um mundo "limpo" e "puro" seja idéia simpática aos olhos do mundo. A utopia faz parte da história intelectual do Ocidente. Hesíodo, provavelmente século 8 a.C., acreditava nisso em "Os Trabalhos e os Dias", um dos primeiros textos sobre o paraíso perdido. Depois dele, a produção utópica multiplicou-se e floresceu. Até chegar, razoavelmente intacta, a Hitler e seu Mein Kampf (que, no essencial, é uma paráfrase da Germânia, de Tácito). Não admira que Hitler tenha abraçado a luta contra o tabagismo: o programa político dos nazistas assenta na possibilidade real de implantação do "homem puro" --uma raça de homens sem as contaminações vergonhosas do passado.

Lembrar isto não é negar que o tabaco prejudica a saúde. Claro que prejudica --como, aliás, dezenas de outras atividades que definem a nossa maravilhosa imperfeição. Mas devemos perguntar se, em nome de uma idéia iníqua e altamente discutível de perfeição pessoal, devemos humilhar aqueles que necessariamente se afastam do nosso arquétipo. É legítimo escolher não fumar. Não é legítimo escolher humilhar quem fuma.

Porque fumar faz bem. Sim, eu sei, a frase soa a provocação gratuita. Não é. Fumar pode arruinar os pulmões. Mas as pessoas que fumam sabem disso. E sabem que o ato de fumar não é apenas a extensão de uma falha pessoal. Muitas vezes é a afirmação vigorosa de que somos imperfeitos mas somos humanos: imperfeitos porque dependentes; e humanos porque mortais. Quando um fumante acende seu cigarro, ele pode estar descontando seus minutos de vida. Mas nos minutos que lhe restam, ele é senhor do seu destino e da sua preciosa liberdade. Prefiro esta gente.




11 de fevereiro

LONDRES
- Carlos e Camilla vão casar. Curioso. Em 1936, Eduardo 8º foi obrigado a escolher: o trono ou Wallis Simpson, uma americana divorciada (twice) que, segundo consta, era um tesão. Eduardo escolheu Wallis porque nenhum homem em estado normal troca o sexo pelo cetro. Wallis era feia como Camilla, o que só comprova a velha tese de que mulheres feias compensam na intimidade. Os ingleses gostaram da atitude de Eduardo: uma verdadeira história de amor, dizem. Talvez. Mas Eduardo tinha simpatias preocupantes com a causa nazista. Como, aliás, grande parte da aristocracia inglesa na década de 1930. Mas divago.

O casamento de Carlos com Camilla foi recebido com aplausos. A esquerda anti-monárquica esperava que a notícia fosse bomba no Reino Unido. Não foi. Alívio. Carlos é homem, Carlos é adulto. Será rei. Imperdoável, para os ingleses, seria um rei com amante oficial, saltitando pelos corredores de Buckingham Palace, de quarto em quarto, como um patético colegial em viagem de curso.

Além disso, o casamento de Carlos e Camilla é operação de charme para a Família Real. Desde a morte de Diana, uma criaturinha simpática mas mentalmente instável, que a acusação aos Windsor é repetidamente a mesma: frieza e distância. Ou, se quiserem, incapacidade de adaptação ao mundo moderno. Ao regularizar sua situação, Carlos se comporta como qualquer londrino de classe média, subitamente divorciado e subitamente viúvo: entre a hipocrisia e a verdade, escolhe a verdade. Lágrimas e suspiros entre a criadagem.




16 de fevereiro

GLASGOW
- Quem foi Macbeth? Pequena discussão entre historiadores escoceses. Shakespeare pintou o monarca com cores negras e sanguinárias. Erro, dizem. Macbeth reinou na Escócia e reinou bem: 17 anos de prosperidade e paz, sem contestação social ou nobiliárquica. Shakespare exagerou no quadro: Macbeth surge como monarca cruel, capaz de assassinar Duncan durante o sono. Shakespeare transformou Macbeth em demônio.

Será? Dúvidas, dúvidas. Tolstói não gostava de Shakespeare porque, precisamente, acreditava que o bardo inaugurara uma escola de imoralidade e irreligiosidade. Sempre discordei do velho Leon que, ironia trágica, terminou sua vida como um Lear atormentado (Harold Bloom acertou). Digo mais: se Leon Tolstoi tivesse vivido mais uns anos, teria lido as impressões deixadas por Pasternak, tradutor de Shakespeare e romancista tolerável, que sempre me pareceram mais acertadas: quando lemos Macbeth, estamos, no fundo, lendo Dostoiévski, sobretudo o Dostoiévski de "Crime e Castigo".

Que nos ensina Macbeth? Não apenas a dimensão cruel do poder e a forma bárbara como os homens cometem crimes em nome de ambições várias. Au contraire. Encontramos em Shakespare, e pela primeira vez na história da literatura moderna, a visão radical do arrependimento e da consciência. Aquilo que devora Macbeth e sua amada (a pérfida Lady Macbeth) não são os filhos de Duncan e toda a cavalaria pesada que Macbeth foi torturando e dizimando. Macbeth morre às mãos de sua consciência. Como Raskolnikov, o pobre estudante que, embriagado em niilismo e Nietzsche, comete o crime e é devorado pela culpa. Pela sombra de seu próprio arrependimento.

Uma das cenas mais dramáticas de Macbeth acontece quando o monarca, poucas horas antes do fim, tem um leve rasgo de lucidez e pressente que jamais terá uma velhice tranqüila e feliz. A memória do seu crime --a memória dantesca do seu crime-- acabará por destruí-lo, como destruiu sua amada. É o momento sublime de Macbeth que, acredito, talvez não faça grande sentido no século 20. O século 20 substituiu a consciência pela ideologia, que tudo permite, que tudo perdoa. Quem tem ideologia, não precisa de consciência para nada.




20 de fevereiro

LISBOA
- Os portugueses elegem novo governo. Em trinta anos de democracia, Portugal teve 16 governos. Isto diz tudo sobre a estabilidade política - e psíquica - do povo em causa. Ainda não chegamos à Itália, que em cinqüenta anos produziu 59 governos. E, claro, estamos longe de nossa Primeira República (1910-1926), que teve governos que duravam quatro horas. Uma rapidinha.

A campanha me cansou de morte. Escrevi textos mil, fiz comentários televisivos. No final, vontade de emigrar. Aliás, pode acontecer. Desconheço ainda os resultados. Mas prevejo vitória do Partido Socialista, crescimento da extrema-esquerda, relativo esmagamento do centro moderado (o Partido Social Democrata, ainda no poder). Porém, se o PS ganhar sem a maioria no Parlamento, José Sócrates, presidente dos socialistas, governa com a esquerda radical que já prometeu implantar dez medidas salvíficas - dez medidas que liquidam qualquer país. Não sei se a União Européia terá uma palavra sobre o assunto. Duvidoso. Quando a extrema-direita ganha, Bruxelas espirra (lembrar Haider, na Áustria). Quando a extrema-esquerda governa, Bruxelas aplaude. Seja como for, peço a meus leitores brasileiros para irem tratando de minha chegada.

Mas a campanha ensina várias coisas. Curiosamente, leio entrevista na "Veja" com o filósofo brasileiro Roberto Romano que assenta como uma luva em nossos desatinos democráticos. Um banho de inteligência. Diz ele que as democracias mediáticas de hoje não promovem competência intelectual. Sem dúvida. Os partidos são máquinas de poder --e de empregos-- que lançam suas estrelas pop na conquista de votos. A campanha portuguesa para as eleições legislativas é exemplo do que digo e os dois principais adversários (Santana Lopes, primeiro-ministro demissionário, e José Sócrates, provável futuro) são duas construções televisivas, que existem porque existe luz e palco. Também aqui ainda estamos longe de Itália, onde Silvio Berlusconi acaba de recrutar o ator Bud Spencer, 75, para disputar cargo regional (a murros e tapas, imagino). Mas o fosso está aumentando: o fosso entre gente capaz de governar e gente capaz de ganhar eleições. Os partidos, claro, preferem gente capaz de ganhar eleições. Depois é o abismo.

Não que os intelectuais sejam garantia de nada. Pelo contrário: Roberto Romano tem razão quando confessa seu espanto com a infinita capacidade dos intelectuais para se curvarem perante os governos, do fascismo ao socialismo. Um dos livros mais impressivos sobre o assunto --que recomendo-- foi escrito por Mark Lilla: The Reckless Mind: Intellectuals in Politics (New York Review of Books, 216 págs.). O livro de Lilla é estudo rigoroso sobre pensadores europeus que cederam a causas infames --como Heidegger ou Sartre-- os "idiotas úteis" de que falava Lenine.

E porquê? Difícil explicar essa atração dos intelectuais pela causa totalitária. Mas acredito que existe em todo o intelectual a nostalgia platônica de encontrar ordem na desordem. A velha ambição de uma República ideal, onde podemos finalmente descansar nossas mentes saturadas. Não resulta. Nunca resultou. Platão partiu para ensinar o tirano de Siracusa. Foi o desastre.

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  • Folha Online publica crítica de leitores a artigo de colunista da Pensata
    João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

    E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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