Pensata

João Pereira Coutinho

13/11/2006

Beleza e dureza

Dormir

Existem momentos em que nos sentimos vingados. Aconteceu recentemente, quando o "Courrier International" explicou ao mundo que dormir emagrece. Ou, inversamente, dormir pouco engorda muito. Não que eu não soubesse já: o segredo da minha elegância resume-se numa palavra. Cama. Ou, se quiserem, duas: manhã e ginástica. Nunca as conheci. O problema é saber se o mundo está interessado em ouvir essas verdades.

Se não está, deveria: de acordo com um estudo da Universidade do Illinois, também publicado pelo "Courrier", soube-se agora que os gordos contribuem para o aquecimento global. Não necessariamente pela libertação de gás metano, como acontece com a pecuária de grande porte (sobretudo em França, onde 20 milhões de vacas lançam anualmente 38 milhões de toneladas de gases para a atmosfera).

Mas porque o transporte dos gordos implica um consumo energético que será, a prazo, incomportável para o ambiente. Que fazer? Honestamente, só vejo um caminho: elevar o sono (e a sesta) a medida de prevenção ecológica. Eu, confesso, estou disposto a dar o meu contributo.

Estética

Leio na imprensa do dia que a televisão portuguesa pretende estrear um "reality show" onde concorrentes de todo o país mudam de vida, mudando de rosto. Não apenas de rosto: de estilo, de cabelo, de unhas e até de dentes. Operação plástica completa. Nome: "Dr., Preciso de Ajuda". Sugiro subtítulo: "Ajuda estética ou psiquiátrica, minha senhora?" O programa já existe nos Estados Unidos e especialistas lusos ouvidos a respeito afirmam que o programa será apenas conclusão lógica de uma moda corrente: a moda que transformou cirurgias plásticas em produtos de consumo alargado.

O Brasil é campeão no assunto e, só em 2005, foram realizadas 650 mil intervenções em clínicas brasileiras (15% entre jovens de 14 e 18 anos; 82% são mulheres). Nada me espanta nesses números, embora não seja de excluir que, a prazo, as autoridades tenham de fazer alguma coisa sobre a matéria para proteger a segurança de terceiros. Há uns tempos, num voo transatlântico, uma senhora de idade respeitável foi acometida por explosão violenta nos seios siliconados, que provocou pânico na tripulação inteira.

Com a sombra terrorista a pairar sobre o Ocidente, o avião regressou a Londres e a senhora foi interrogada pelas autoridades britânicas. Não sei se Osama Bin Laden esteve atento ao fenómeno, relatado com abundância nos jornais da Europa. Mas não seria absurdo que, nas clínicas do Rio, dezenas e dezenas de talibans se entregassem ao silicone e ao botox, dispostos a transformar o corpo numa arma. Literalmente.
Divulgação
Hathaway, Streep e Blunt em "O Diabo Veste Prada"; confira a galeria de imagens do filme
Hathaway, Streep e Blunt em "O Diabo Veste Prada"; confira a galeria de imagens do filme


Moda

"O Diabo Veste Prada" é um desperdício de tempo. Não do meu, que gosto de o desperdiçar à vontade. Mas do tempo de Meryl Streep, que apesar do talento homérico não consegue salvar o navio. No filme, Streep é Miranda Priestly, editora de moda de uma revista novaiorquina que espalha terror entre a criadagem. Dizem que Streep é encarnação de Anna Wintour, atual chefe da "Vogue".

Eu não sei se é verdade, apenas li --e essas informações, obviamente inúteis, ficam sempre bem num artigo convencional. Adiante. Certo dia, e de volta ao filme, a jovem Andy Sachs entra no escritório de Miranda para entrevista de emprego. Andy tem altíssimos padrões morais e deseja carreira "séria" no jornalismo "sério" (mercados, política, obituários; eventualmente, Lula e o PT). Azar. Conquistada pelo charme "noir" de Streep, Andy vende a alma ao Diabo, ganhando em troca vestidos Dolce & Gabbana e sapatos Manolo Blahnik. Se o filme terminasse aqui, eu abriria uma garrafa de champanhe. Mas não, mas não, mas não.

Andy tem de reconquistar a sua alma, jogando os vestidos na cara de Miranda, ou seja, na cara do Diabo. E o Diabo aceita tudo e compreende tudo, dando uma ajuda suplementar para que Andy regresse ao Paraíso da normalidade e da moralidade. E eu? Eu, sentado na escuridão do cinema, imagino o dia em que assistirei a um filme do género sem lição de moral. Imagino história: jovem de bom coração entra na indústria da moda; descobre que a indústria da moda não tem grande profundidade ética mas, pelo menos, proporciona algum divertimento estético; encantada e conquistada, a mocinha diverte-se dia e noite e morre aos 80 sem sentimento de culpa. Não sei se Hollywood estaria disposta a comprar este roteiro. Os meus contatos estão com a Folha; e a minha alma, à disposição de Meryl Streep.

Viagra

Uma sondagem recente mostrou ao mundo que os ingleses continuam ingleses. De acordo com o Office for National Statistics, sexo é atividade rara entre os nativos: uma em 8 mulheres, entre os 16 e os 50, não teve qualquer relação o ano passado; e, entre os homens, 1 em cada 6, com idade inferior a 70, passou a noite no pub, não na cama. É possível que as coisas melhorem depois dos 70. Não riam. Pelo menos, não há desculpa desde que Giles Brindley espantou o mundo nos inícios da década de 80, provando que é possível corrigir a falha hidráulica.

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Quem é Giles Brindley? Num dos melhores livros sobre a matéria --"A Mind of Its Own: A cultural history of the penis"-- o escritor David M. Friedman conta a história do primeiro momento "proto-Viagra": quando Brindley, na presença de seus pares da American Urological Association, resolvia apresentar a revolucionária "phenooxybenzamine", droga que prometia ereções "by demand".

Ninguém acreditou em Brindley, muito menos no suporte teórico (e gráfico, e visual) em que Brindley baseava seus estudos. Demasiado bom para ser verdade. Foi nessa altura que o cientista, ofendido na sua probidade académica, se retirou do palco, prometendo regressar em minutos. Assim o fez, mas só depois de ministrar a droga nele próprio.

De volta ao palco, baixou as calças com determinação e recolheu os suspiros de cavalheiros (e madames) visivelmente assombrados. "E se os senhores pensam que é uma prótese", acrescentou Brindley, com severidade, "sugiro que se aproximem e que toquem". Escusado será dizer que Brindley era inglês. E, a julgar pela sondagem recente, a ingratidão dos compatriotas talvez não esteja à altura da coragem do patriarca.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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