Pensata

João Pereira Coutinho

27/11/2006

Ladrão que rouba ladrão

Eu não costumo plagiar. Quando muito, roubo. Existe uma diferença. Plagiar é um ato de preguiça. Roubar é um ato de amor: uma forma genuína de tirarmos a outro o que desejamos intensamente como nosso. Para acrescentar algo mais. Não é bonito roubar a namorada do amigo. Mas pior é viver sem ela: consumido pela angústia funda e profunda de que amputamos uma vida, às vezes duas, quando seria possível acrescentar uma terceira. Valerá a pena?

Mesmo a frase que inaugura essa crônica não é minha. "Os artistas imaturos copiam; os artistas maduros roubam"? Roubei-a, sem vergonha e sem temor, ao sr. Thomas Stearns Eliot - "T.S.", para os íntimos --que em matéria de roubo era um especialista na matéria. Não façam essa cara. Ou façam --mas permitam-me uma história: uns anos atrás, num jantar literário, confessei a uma amante de poesia inglesa que a minha paixão por Eliot era a típica paixão de um ladrão por outro. A criatura ruborizou (de fúria) e perguntou seriamente se eu falava seriamente.

Minha querida, eu falo sempre seriamente, mesmo quando não falo seriamente. Então ela perguntou se eu lera com atenção e respeito "A Terra Devastada". Eu perguntei qual delas. Porque existe uma "Terra Devastada" de Madison Cawein, um obscuríssimo poeta americano, que morreu em 1914 (no Kentucky) e deixou três dezenas de volumes de poesia que ninguém, obviamente, conhece. Ninguém, vírgula: T.S. Eliot conhecia. E, confrontado com a desolação espiritual e imagética de Cawein ("a breath of dust", "like the wisps of a greying dawn"), limitou-se a erguer um monumento poético que leio e releio com um prazer grato e redentor ("a handful of dust", "under the brown fog of winter dawn"). Obrigado, ladrão.

(E, já agora, de ladrão para ladrão, que fale a verdade: a frase sobre artistas que imitam e roubam não é minha mas também não é tua, Tom. Disse-a Lionel Trilling, anos antes, para anos depois lamentar o roubo. O teu, agora meu. Mas divago.)

E toda essa conversa para quê? Para dizer que li o artigo recente de Paul Collins, na "Slate". Collins, crítico e historiador, avisa os mortos e os vivos que a internet não perdoa. E conta uma história: Alex MacBride, um linguista do Google, escreveu por mero acaso uma frase de um autor secundário (England Howlett) no Google Book Search. Resultado? A frase de Howlett não era de Howlett. Era de Sabine Baring-Gould, que a escrevera em 1892, sete anos antes de Howlett, embora fosse mais correto dizer que Sabine a copiara de um terceiro, Benjamin Thorpe, que a publicara meio século antes de Howlett e Sabine. Seria caso para perguntar, em trocadilho simples, se Thorpe foi suficientemente torpe para copiar um antepassado ainda mais obscuro. Mas, como alguém diria, não vou por aí.

E não vou por aí porque Collins passou ao lado ao acreditar que a internet acabará por arruinar reputações inteiras, mostrando cópias sobre cópias num atentado à "originalidade". Melville copiou linguagem técnica para algumas passagens náuticas de "Moby Dick", diz-nos Collins. E até a diatribe anti-plagiarista de Lawrence Sterne, em "Tristram Shandy", é cópia descarada de Robert Burton, em "The Anatomy of Melancholy". Escândalo?

Talvez seja. Mas se tudo isso é verdade, não deixa de ser igualmente verdade que existe em Melville e em Sterne uma autonomia de valor que ultrapassa a mera cópia, expediente barato de quem mente por necessidade. Melville e Sterne não mentem por necessidade. Mentem por prazer: pelo prazer de quem usa o roubo para erguer uma obra inteiramente nova, feita de obras inteiramente velhas. Uma conversa, se quiserem, em que nos limitamos a repetir o que ficou dito na noite anterior, juntando pensamentos próprios e impróprios que transformam e se oferecem como um tesouro para o ladrão posterior.

Aconteceu com Eliot, que fez da poesia uma rememoração antológica --e "antológica" no sentido literal do termo: pescando e repescando temas ou imagens da tradição ocidental-- do ilustre Dante ao ignorado Cawein. Aconteceu com Nabokov e a sua "Lolita", que muito provavelmente retoma o conto esquecido de um esquecido (e assaz mediano) Heinz von Lichberg, jornalista alemão que não deixou rasto. Em 1916, Lichberg publicava um conto ("Lolita") onde a personagem principal, um viajante marcado por paixão funesta na juventude, se perde de amores por ninfeta provinciana. Nabokov viveu em Berlim em período ideal para esse encontro. Abençoado encontro. Quarenta anos depois, o "rendez-vous" de Nabokov transbordou no mais perfeito livro sobre a morte. Corrijo: sobre um homem risivelmente condenado a amar a morte, sempre a morte, só a morte.

E se tudo isso acontece com Eliot ou Nabokov, que dizer de Lytton Strachey, que em 1918 inaugurava um género e um estilo com o exercício biográfico dos seus "Eminent Victorians"? Biográfico, sim; e roubado, seguramente, não fossem os retratos vitorianos de Strachey roubos continuados a Edward Tyas Cook, A.P. Stanley ou E.S. Purcell, que Strachey usou e transformou em matéria inteiramente sua. Exatamente como Coleridge antes dele, embora no caso do febril Samuel Taylor seja ainda mais difícil dar a Coleridge o que é de Coleridge, e a Schiller (ou a Southey, ou a Richter, ou a Schelling) o que é de Schiller. A verdade do roubo destrói a beleza da biografia literária na "Biographia Literaria"? Deus me perdoe. Eu acho que não.

É necessário separar o plágio do roubo; a preguiça da paixão; o copista do continuador. E repetir, como Dryden sobre Jonson, que muitos são capazes de imitar. Mas poucos conquistam autores alheios e, como monarcas vitoriosos, reclamam terra velha onde constroem um mundo inteiro.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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