Pensata

João Pereira Coutinho

25/12/2006

Dicionário 2006

A

ANNAN, Kofi
- O secretário-geral abandona o cargo e deixa, como herança, o retrato perfeito da fraqueza da ONU: se esquecermos os 800 mil tutsis chacinados no Ruanda (Kofi era o responsável pela missão de paz), encontramos no programa "Petróleo-por-Comida" um dos maiores escândalos de corrupção da diplomacia internacional, que permitiu a Saddam Hussein enriquecer altos funcionários da ONU, da Rússia, da China e da França, o que talvez explique a relutância de russos, chineses ou franceses, sem falar da própria ONU, em fazer cumprir as resoluções da organização (17) que Saddam violava impunemente. A juntar a tudo isso, existe ainda o genocídio corrente no Sudão (que ninguém pára) e casos de violação e proxenetismo que soldados da ONU praticaram no Congo e, segundo a BBC, no Haiti e na Libéria.

Reuters
O papa Bento 16
O papa Bento 16
B

BENTO 16
- Em discurso acadêmico numa universidade alemã, o Papa Bento 16 citou um imperador bizantino em diálogo com um erudito persa. Objetivo de Bento: denunciar o irracionalismo religioso que leva à violência e à morte. O Islão radical não gostou que o Profeta Maomé fosse citado como exemplo e, nos dias seguintes, o extremismo regressou em força, com igrejas queimadas, uma religiosa assassinada na Somália e várias organizações de beneméritos a exigir, modestamente, a cabeça do Papa. Paradoxo admirável: o Islão é uma religião de paz; mas, para que não restem dúvidas, aparecem sempre uns milhares de fanáticos disponíveis para matar em seu nome.

BUSH, George W. - Diz-se que o erro central de Bush foi o comprometimento americano no Iraque. Discordo. O erro central foi o falso comprometimento - esse "déficit de atenção" que Niall Ferguson, historiador britânico, denuncia em "Colossus: The Rise and Fall of the American Empire", ao notar que os Estados Unidos são uma espécie de Império em negação: dramaticamente divididos entre uma vocação imperial e uma incapacidade para se comportarem, a longo prazo, como um poder imperial, disponibilizando recursos e, sobretudo, homens no terreno. E agora? Agora, sair seria um desastre, não apenas para o Iraque e para o Oriente Médio --mas sobretudo como manifestação total de impotência perante o terrorismo islamita. Osama Bin Laden não esqueceu as fugas apressadas da Somália ou do Líbano. E agiu em conformidade, numa manhã de setembro em Nova York.

C

CASTRO, Fidel
- Fidel Castro entrou em Havana há quase meio século. A ideia do Comandante era terminar com o "bordel" de Fulgêncio Batista, realizar eleições livres em três meses e respeitar as liberdades individuais. Cinquenta anos depois, Cuba é uma relíquia stalinista e Fidel é um Lear sem a dignidade de Lear, que regularmente surge em fotografias ou imagens televisivas com o jornal do dia. Só para mostrar que ainda está vivo, como se fosse um sequestrado nas mãos dos seus captores. De certa forma, faz algum sentido: ao condenar o país à miséria e à tirania, Fidel ficou refém da sua própria utopia. Depois da morte, o PC cubano, relativamente jovem e ortodoxo, não irá entregar a chave do tesouro a democratas heterodoxos. Os otimistas devem serenar o otimismo.

Charges - Um jornal da Dinamarca, para vencer o clima de medo que se instalara na redacção e no país, publicou 12 charges sobre o Profeta Maomé. Dilúvio: numa atitude que muitos "compreenderam" e até "aplaudiram", a turba fanática saiu para a rua, destruiu embaixadas e lançou ameaças de morte aos autores dos desenhos. Isso não seria grave se as reações do Ocidente não fossem igualmente graves, com a diplomacia européia a pedir desculpas. Mas desculpas de quê ou por quê? Ninguém sabe. Para começar, um jornal é propriedade de privados, não do governo da Dinamarca, muito menos da política externa da União Européia. E, depois, pedir desculpas pela liberdade de expressão em que a Europa vive e sobrevive implicaria, de imediato, apagar séculos de liberdade artística ou literária que, em rigor, acabam sempre por ofender alguém, algures, em qualquer canto do globo. Quando uma civilização pede desculpas pelos valores que supostamente seriam os seus, surge a pergunta, inevitável, de saber se essa civilização está talhada para a sobrevivência. Duvidoso.


CHÁVEZ, Hugo - Quando Silvio Berlusconi estava em cena, não faltavam pelo mundo "civilizado" muitas opiniões "esclarecidas" que condenavam a Itália pela sua evidente grosseria democrática: como eleger um homem que deixara a economia do país de rastos e transportava uma sombra de corrupção sobre a cabeça? Berlusconi perdeu as eleições e, com a remoção da personagem, perderam-se também as boas consciências democráticas que tudo perdoam a Hugo Chávez. Porquê? Porque o homem foi eleito pelas massas e essa lavagem democrática, que não limpava Berlusconi, limpa o Comandante de qualquer pecado. Essa teoria já seria aberrante por si só, na medida em que uma escolha maioritária nem sempre é uma escolha saudável. Mas existe uma razão suplementar para a recusar: ao demolir os últimos vestígios de um Estado de Direito (pela concentração do legislativo, do judiciário, do exército, da economia e do instituto que supervisiona os atos eleitorais), Chávez pode ser um produto da maioria mas só por piada a Venezuela é hoje uma democracia. Com a anunciada morte de Fidel, a comédia, ou a tragédia do igualitarismo revolucionário, permanece viva na América Latina. Pobre América Latina.

E

Escravatura
- Primeiro, foi Chirac; depois, foi Blair: um e outro entenderam por bem pedir desculpa pela escravatura. Não se entende a necessidade do gesto, a menos que Chirac e, sobretudo, Blair, tenham como propósito pedir desculpa pela abolição da escravatura, proeza em que o Ocidente foi único. Exatamente o contrário do que hoje sucede no Sudão, na Nigéria, na Mauritânia ou no Mali, para citar apenas os casos mais obscenos, onde a prática se verifica. Além disso, se a culpa é uma espécie de doença genética que vai passando de pais para filhos, entramos numa dança regressiva que só termina no momento em que o segundo hominídeo explorou o primeiro nos alvores do Paleolítico. A história da humanidade, nessa lógica insana e interminável, é uma história sem heróis nem inocentes.

23.mar.2006/Reuters
Jovens entram em confronto com a polícia no subúrbio de Paris
Jovens entram em confronto com a polícia no subúrbio de Paris
F

França -
Tempos houve em que a Fraça exibia um certo charme vital que era um bálsamo para hedonistas ou diletantes. Mas com economia estagnada, 10% de desemprego (e o dobro entre a "canaille"), a alegria foi cedendo espaço para certas neuroses nacionais. É nesse contexto que se entende o famoso Contrato do Primeiro Emprego, a engenharia laboral de Dominique de Villepin que pretendia facilitar a contratação (e o despedimento) dos jovens gauleses, só para abanar um pouco o mercado de trabalho neolítico da França. Azar: os jovens saíram para a rua, como em 1968; mas, ao contrário de 1968, não saíram para marchar pela transformação do "status quo"; marcharam, pelo contrário, em defesa do mundo estático, burguês e ultrapassado de seus pais e avós. Eu já sabia que não existia grande diferença entre um reacionário e um revolucionário: ambos recusam violentamente a realidade do presente, optando por um regresso ao passado (ou ao futuro). Mas nunca é de mais assistir a essa lição filosófica diretamente de Paris.

G

GRASS, Günter
- O "affair" Grass comoveu as letras mundiais: em livro de memórias, o Nobel da Literatura confessou que, aos 16 anos, marchou com as Waffen SS. Marchou voluntariamente e, nas palavras do próprio, para fugir ao clima entediante e "burguês" da família. O caso motivou acusações indignadas à hipocrisia de Grass, a consciência moral da Alemanha que escondeu o seu negro passado ao mesmo tempo que exigia dos compatriotas o esforço doloroso de lembrar. De lembrar e de assumir. Histeria desnecessária. Primeiro, porque só se engana com a autoridade ética de um "intelectual", qualquer que ele seja, quem no fundo se deseja enganar. E, depois, porque apesar da derrota da Alemanha ter enterrado o jovem soldado Grass, eu desconfio que ele não abandonou a "forma mentis" que o levou a aderir ao Reich: um certo ódio ocidentalista e um desejo pulsional e revolucionário que ainda hoje se verifica na maturidade. Defender Cuba, ou a China, não são propriamente os pergaminhos de um democrata.

Gripe das aves - Todos os anos, o mundo prepara-se para um novo Apocalipse. Em 2006, o Apocalipse seria aviário, com um vírus da gripe que, nas estimativas mais conservadoras, acabaria por dizimar milhões de seres humanos. Morreram umas seis dezenas, sobretudo em países sem grandes cuidados de saúde e de higiene, ou seja, incomparavelmente menos do que os milhares de infelizes que, todos os anos, tombam para lado com uma gripe "normal". A aves foram como vieram. Sem ninguém ver. Para o ano há mais.

I

Irã
- O Irã representa hoje a principal ameaça para a existência e a sobrevivência histórica de Israel desde a sua fundação: armas nucleares nas mãos de organizações terroristas treinadas e patrocinadas por Teerã implicaria um novo patamar de loucura destrutiva para a Europa e para o Ocidente. Dizer que Israel também possui armas de destruição maciça pode fazer as delícias dos simples; mas ilude a evidência de que não é Israel a prometer riscar o Irã do mapa.

IRVING, David - David irving começou o ano na cadeia e vai terminar 2006 fora dela, em liberdade condicional. Prender um negacionista do Holocausto é atitude escusada e, mais do que isso, escusadamente benemérita: ela transforma a criatura em herói, permitindo que teocracias sem grande tradição liberal possam acusar o Ocidente de hipocrisia na sua defesa da liberdade de expressão (lembrar a recente conferência em Teerã sobre o Holocausto). Perante um negacionista, duas atitudes possíveis: o silêncio civilizado; ou, em casos extremos, a crítica intelectual. No caso de Irving, essa crítica chegou em 2000, quando em julgamento londrino a historiadora Deborah Lipstadt desmontou as teorias de Irving, com ajuda de especialistas na matéria. A verdadeira condenação de Irving esteve nesse julgamento e não na condenação absurda de um tribunal austríaco. E, já agora, no livro posterior, que Richard E. Evans publicou: "Lying about Hitler: History, Holocaust, and the David Irving Trial". É a palavra definitiva sobre a matéria.

J

Jornais
- Ano negro para a imprensa: a internet avança e os jornais recuam em número e influência. Especialistas vários dissertam sobre o drama e propõem medidas espartanas para controlar a sangria. As medidas, que usualmente envolvem mais imagem e menos texto (o triunfo da iliteracia sobre a exigência), pretendem adaptar-se ao ar do tempo: um tempo literalmente sem tempo, ou seja, sem a deliciosa ociosidade que o jornal clássico (e diário) evoca e exige. Não vale a pena verter umas lágrimas pelo enterro, até porque as notícias dessa morte são francamente exageradas. Para começar, o jornalismo, no papel ou no ecrã, continuará a existir entre nós: o "métier" define-se pela função, e não necessariamente pelo meio em que o "métier" é exercido. E, para acabar, uma multiplicidade de leitores, com gostos e tempos diferentes, implicará também um jornalismo múltiplo e especializado, capaz de responder a um auditório diverso. Já está a suceder.

P

PINOCHET, Augusto
- Morre Pinochet e existem festejos pelas ruas de Santiago. Não condeno. Mas condeno os partidários do General que gostam de agitar a economia chilena para comprovar a excelência do homem entre 1973 e 1989. Mau caminho: a alegada beleza de um ideário, seja ele marxista ou liberal, não desculpa a violência do Estado na prossecução dos seus fins políticos A máxima serve para Fidel. Deve servir também para Pinochet.

R

ROYAL, Ségolène
- Os socialistas franceses escolheram o rosto para as presidenciais do próximo ano. O nome é Ségolène Royal e, na prosa inflamada dos mais impressionáveis, estamos na presença de senhora esteticamente apelativa, sobretudo num mundo dramaticamente dominado por uma cultura televisiva e juvenil. Convém não exagerar: nem na beleza da senhora, nem na alegada frescura que ela traz para o PS e para a França. Durante a campanha para a liderança do partido, Ségo foi cuidadosamente vaga em afirmações políticas que nada dizem sobre o futuro do país. E, já depois da vitória sobre os "elefantes" do partido, e pela boca do seu assessor para os assuntos exteriores, um primeiro sinal de alarme: se Royal chegar ao Eliseu, a relação transatântica entre a União Européia e os Estados Unidos será seriamente revista e, quem sabe, limitada. Um mau começo.

S

SHARON, Ariel
- O homem que participou em todas as guerras de Israel desde a sua fundação jaz agora numa cama de hospital, com a vida terminada. Mas não apenas a vida. A visão de Sharon, que impulsionou a criação do partido Kadima (vencedor nas eleições), foi também brutalmente enterrada com os acontecimentos em Gaza e no sul do Líbano. Ao contrário do que se pensava, a troca de terra por segurança não foi a receita para a paz. Foi, antes, a imagem de uma capitulação evidente perante um inimigo que não está interessado em negociar (lembrar Camp David, 2000) e que interpretou as retiradas unilaterais como manifestações de fraqueza, que interessava explorar ainda mais.

São Paulo - Aqui em Portugal assistiu-se com espanto e algum pavor à criminalidade do PCC (Primeiro Comando da Capital), que paralisou a cidade e espalhou o medo, a destruição e a morte. Uma imagem --ou, melhor, duas imagens-- ilustra bem o problema: num dos dias da revolta, a av. Paulista estava deserta; no dia seguinte, a vida paulistana fluía com a naturalidade habitual. Isso não mostra apenas a dramática habituação dos brasileiros ao crime organizado e diário; mostra como o PCC é um mini-estado dentro do Estado, que detém capacidade autónoma de paralisar uma cidade e, pior, de negociar a sua normalização.



Reprodução
Zinedine Zidane (à esquerda) desfere uma cabeçada no zagueiro Materazzi
Zinedine Zidane (à esquerda) desfere uma cabeçada no zagueiro Materazzi
Z

ZIDANE, Zinedine
- Em momento epifânico, Zinedine Zidane terminou a Copa da Alemanha com cabeçada olímpica em jogador italiano. Expulso, saiu em desgraça e a Itália venceu o torneio. Mas Zidane acabou eleito o melhor jogador. Justíssimo. Assisto à cabeçada e declaro-me rendido à beleza, e à irracionalidade, da besta humana. Freud sabia que existe nos homens um fundo pulsional de destruição (e autodestruição) que a sociedade reprime (mas não extingue). Zidane ilustrou o fenômeno. Scorsese, um dia, vai filmar o ato.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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