Pensata

João Pereira Coutinho

08/01/2007

Mortos-vivos

1º de janeiro

O problema de um hipocondríaco não é a doença. É o medo da doença. Sei do que falo. Sou hipocondríaco há trinta anos. Isso significa que, ao mínimo sinal de alarme, eu fico, numa palavra, alarmado. Meu primeiro gesto é acalmar-me. Quimicamente falando, claro. A garganta dói? Eu tomo um calmante. O corpo dói? Calmante. Existem sinais de febre --e a febre, comigo, começa aos 37? Calmante. Antes da doença propriamente dita, eu preciso de uma armadura guerreira para enfrentar os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Minha armadura é o calmante. Depois, e só depois, eu estou pronto. Pronto para a batalha.

Foi assim que 2007 começou para mim. Não foram apenas os excessos dos últimos dias que me condenaram a uma cama infecta e terminal. A gripe chegou, não pediu licença para entrar e instalou-se no meu corpo condenado. Eu senti: leve dor na parte frontal, uns arrepios de frio pela espinha abaixo, alguma tosse pelo cano acima. Tomei dois calmantes, deitei-me e mandei chamar a família. Despedi-me dos parentes próximos. Depois telefonei aos distantes. Os amigos também vieram, também me escutaram. "Eu amo-vos, a sério. Nem sempre fui a pessoa que vocês desejavam, talvez por fraqueza, talvez por estupidez. Mas parto de consciência tranqüila. É tão cedo, eu sei. Contem a minha história." Às vezes levanto um braço e aponto para a janela, para o céu escuro que corre lá fora. "A luz apaga-se, a luz apaga-se. Por falar nisso, que horas são?"
Folha Imagem
Hipocondria afeta pelo medo da doença
Hipocondria afeta pelo medo da doença


A gargalhada é geral. Pior: entre acusações de loucura, alguns dos presentes insultam o moribundo. É nesses momentos que o moribundo, apesar do medo da doença, não se importaria de ter coisa séria para mostrar. E, quem sabe, talvez finar. Para que o mundo em volta pudesse definhar com remorsos e meu fantasma, pendurado sobre as consciências deles, sussurrando: "Eu disse, eu avisei".

Infelizmente, a noite chega e existem sinais de melhoras. Por favor, não abram as garrafas. Ainda. Os sinais são tênues. A febre desceu, "ma non troppo". Confirmo. Confirma-se. Um hipocondríaco nunca mede a temperatura uma vez. Mede três, quatro, cinco vezes. Seguidas. E sempre incrédulo com a melhoria do corpo. Como se um corpo saudável fosse uma conspiração contra ele. 37,5º? Só?

Levanto-me. Frágil. Rasgo o testamento que fui rabiscando nas últimas horas --meus livros, meus discos, minhas cuecas. Minha lingerie. Esqueçam a lingerie. E então sinto que Deus conferiu uma segunda oportunidade. Deus já concedeu várias. Estou vivo. Uma alegria sincera vai crescendo no meu peito. Não é coisa normal. Essa alegria estranha que cresce no meu peito. Definitivamente, ainda é cedo para festejar. Regresso aos lençóis enquanto a alegria não passa.

3 de janeiro

Existem vantagens na doença. Lemos mais do que seria suposto. Lemos menos do que seria desejável. Em três dias de cama, devorei o segundo volume de memórias de Gore Vidal, "Point to Point Navigation", uma continuação e, em certos casos, uma repetição de "Palimpsest" (sentença: Vidal, aos 80, ainda não tem herdeiros; sorry, Anthony Lane); uma biografia sobre Kingsley Amis ("The Life ofà", de Zachary Leader) que me obrigou a regressar a "Lucky Jim", um dos mais divertidos romances da segunda metade do século 20. E jornais, e revistas. E balanços (de 2006), e previsões (para 2007). Fui passando os olhos com certo fastio. Milagre: a minha atenção acaba por pousar em estudo do Instituto Max Planck (Berlim, Alemanha) que prova o inevitável: as maiores inimigas das mulheres são, temo bem dizer, as mulheres.

Conclusões do estudo: quando uma mulher atinge um lugar de liderança, a discriminação é exercida maioritariamente sobre as outras mulheres, e não sobre o sexo oposto. As investigadoras (duas mulheres; duas rivais?) classificam o cenário como "Síndrome da Abelha Rainha", uma espécie de "Fêmea-come-Fêmea-no-local-de-trabalho". Não se excitem.

Explicações? A clássica: os estereótipos cultivados durante séculos de dominação masculina acabaram por ser inconscientemente assumidos pelas primeiras mulheres a furar o machismo reinante. Quando a donzela chega ao topo, ela despe a saia (hmmà) e veste calças para exercer o seu mando, ou seja, o seu lado masculino. A culpa não é dela, coitada. A culpa é dos homens que envenenaram a cabeça dela.

Não estou com forças --físicas, mentais-- para rebater o estudo. Concordo com a delirante rivalidade feminina, que explico por motivos essencialmente narcísicos. Mas essa idéia de que os homens exploram as mulheres não se comprova no meu caso. Falo por mim (e, tudo bem, por meia dúzia de amigos próximos, homens, que dariam tudo na vida para entregarem os seus destinos a mulheres profissionais). Eu próprio imagino esse dia com mulher perfeitamente emancipada, que partilho com o leitor descrente:

7:00h

Ela: Acorda, levanta-se.

Eu: Acordo com movimentações no quarto, viro para o outro lado e adormeço com um sorriso infantil.

8:00h

Ela: No interior do carro, no meio do trânsito. Celular frenético.

Eu: Durmo ainda. Celular desligado.

9:00h

Ela: Reunião com colegas de trabalho. Discussão. Neurose. Ritmo cardíaco já está acelerado.

Eu: Durmo ainda. Celular desligado.

10:00h

Ela: Pausa para café. Conspiração contra as outras mulheres. Transpiração evidente. Stress. Queda capilar. (Lepra?)

Eu: Acordo. Olho para o relógio. "Ainda é cedo", penso. Adormeço.

11:00h

Ela: Estuda dossiê complexo que exige relatório até às 17h. Sem falta.

Eu: Banho demorado. Gabriel Fauré a rolar no stéreo.

Meio-dia:

Ela: Almoço. Sandwich de pepino. Suco de cenoura. Em meia-hora.

Eu: Almoço demorado com alguns amigos em restaurante do centro. Duas garrafas de vinho só para o primeiro prato. Brindamos à revolução feminista que levou as mulheres ao poder.

13:00h

Ela: Regressa ao escritório. Sete chamadas telefônicas para responder. Com urgência, sempre com urgência. E o relatório até às 17h.

Eu: Comecei o segundo prato. Favor não incomodar.

17h:

Ela: Enxaqueca. Forte. Relatório concluído. Infelizmente, com erros de cálculo. "Gostaria que a doutora viesse ao meu gabinete", avisa o chefe. Ou a chefe. Melhor ser a chefe. A doutora vai, com a alegria própria de um farrapo.

Eu: Um filme antigo de Minelli na tv. Assisto, antes de ir à massagem com ninfa asiática que dedilha meu corpo com sabedoria secular.

20h:

Ela: Regressa a casa, vinda diretamente da Somália.

Eu: Regresso a casa, vindo diretamente da massagem. Pergunto "Como foi o teu dia, querida?"

7 de janeiro

Saddam Hussein foi enforcado com a solenidade conhecida e o mundo não perdeu tempo a declarar o homem um mártir. Um quê? Esse, aliás, parece ser o problema central da execução: não a natureza grotesca da pena capital; mas a forma prestimosa como transformou um tirano em herói, sobretudo para todos aqueles que lutam em seu nome.

AP
Livro também reúne discografia e bibliografia do grande poeta
Imagem de TV mostra enforcamento de Saddam Hussein, em Bagdá
Não nego que as imagens são repulsivas. Como, aliás, seriam repulsivas imagens captadas em qualquer país islâmico onde a pena de morte, a amputação dos membros ou o apedrejamento de mulheres adúlteras são prática que não parece comover o auditório com o mesmo tipo de indignação moral. Pelos padrões locais, e sobretudo pelos padrões que Saddam estabeleceu durante décadas, o enforcamento foi "business as usual".

Mas acreditar no mártir Saddam é tão absurdo como acreditar no mártir Ceausescu, o antigo ditador romeno que, em 1989, foi igualmente executado perante as câmeras. A Romênia acabou de entrar para a União Européia no início do ano e a idéia de um Ceausescu mártir seria, presumo, um insulto para os romenos que sobreviveram ao regime.

Num ponto, porém, o mundo tem alguma razão: a dignidade de Saddam perante a morte. Hoje, no "Sunday Telegraph" de Londres, o jornalista Nigel Farndale afirma que as imagens do enforcamento são a melhor razão contra a pena capital: elas permitiram que Saddam atingisse um nível de dignidade que ele obviamente não merecia. Nigel Farndale suspeita que essa dignidade se deveu à cobardia dos seus algozes, que insultaram um homem condenado nos seus últimos minutos de vida. Talvez, talvez. Mas a pena de morte não precisa da coragem de Saddam para ser uma aberração ética e jurídica que nenhum país civilizado pode aceitar de cabeça levantada.

Uma história, porém, anima um pouco o tema e até relativiza a coragem de Saddam. Conta Farndale no artigo que o mais famoso carrasco inglês, Albert Pierrepoint, relatou nas suas memórias o curioso encontro com John Amery, um aristocrata condenado à morte por traição. No dia em que Pierrepoint se encaminhou para a cela, a fim de conduzir o aristocrata para o cadafalso, Amery recebeu-o com a seguinte frase: "Mr. Pierrepoint, sempre desejei conhecê-lo, embora não, naturalmente, nas presentes circunstâncias."

Saddam teve coragem. Mas presumo que, para Amery, "coragem" é palavra pequena.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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