Pensata

João Pereira Coutinho

22/01/2007

A bailarina fascista

Talvez eu esteja a exagerar. Mas o Apocalipse caminha para nós. Existem sinais. Leio agora nos jornais do dia que, por toda a Europa, hindus de nacionalidades várias prometem contestar com vigor as intenções da ministra da Justiça alemã em criminalizar a exibição da suástica. Para a ministra, a suástica representa Hitler, o Terceiro Reich e seus projectos de dominação imperial e rácica. Para os hindus, a suástica é um símbolo milenar de paz e serenidade. Deve a União Européia, presidida atualmente pela Alemanha, proibir o símbolo da paz e da serenidade para os hindus?

Em Londres, a loucura foi ao teatro. Segundo parece, uma bailarina do English National Ballet, Simone Clarke, é também membro do British National Party, um grupo de extrema-direita ferozmente antiimigração. Simone, 36, namora com dançarino cubano, imigrante, descendente de chineses. A salada exótica perfeita. Nada disso impediu as brigadas de irromperem pelo teatro onde Simone dançava o clássico "Giselle", insultando a bailarina e exigindo sua demissão dos palcos. Simone continuou a dançar, com notável profissionalismo, apesar dos insultos. A companhia de bailado preferiu não comentar.

Fez bem. Não é fácil comentar a loucura: uma pessoa acaba se confundindo com ela. E se os hindus estão errados do ponto de vista iconográfico --o símbolo nazista não é exatamente igual às suásticas das religiões dármicas-- o que espanta nos protestos londrinos é a evidente selvageria das brigadas. Sim, eu entendo que uma "bailarina fascista" é tão improvável como Osama bin Laden de biquíni em concurso de beleza para misses: existe na combinação um choque visual profundo, como se a grosseria e o filistinismo de Hitler fossem incompatíveis com a subtileza e a elegância do "Quebra-Nozes", que Simone dançou meses atrás (com aplausos da crítica).

Mas essa não é a questão. E não é a questão porque a idéia de punir artisticamente um fascista, ou um comunista, ou um chavista, ou um extremista de ideologia difusa, demonstra apenas a covardia de quem o faz.

Cobardia real: em Londres, as brigadas insultaram quem não se podia defender. Pior: quem exercia a sua arte em palco, um ato de humilhação que só define quem o pratica. A menos, claro, que o "fascismo" da sra. Clarke não se limite a suas idéias políticas e seja exibido na forma como dança: como executa o "demi-plié", como faz o "retiré", como arrisca no "arabesque", pondo a platéia a salivar com desejos tirânicos de invadir a Polônia. Haverá um balé fascista e ninguém avisou?

Mas a cobardia é também intelectual: se a liberdade de expressão é uma benesse, ela implica aceitar vozes discordantes que devem ser toleradas, ou ignoradas, ou debatidas --e, em casos extremos, denunciadas por pessoas concretas que se sintam atingidas no seu bom nome. Existem tribunais para isso. Mas nenhuma sociedade livre será capaz de sobreviver pela criminalização de todas as opiniões que o "senso comum" majoritário considera ofensivas. Proibir é a atitude preguiçosa do tirano menor que, incapaz de tolerar, ignorar ou refutar intelectualmente uma opinião, prefere criminalizá-la.

O gesto é perigoso: ele transforma o extremista em mártir, e o mártir em herói. O caso recente do historiador David Irving, preso (e entretanto libertado) na Áustria, ilustra o ponto: em 2000, Irving ficou com a reputação intelectual desfeita, ao perder em tribunal ação contra Deborah Lipstadt, historiadora que o acusara de ser um negacionista do Holocausto. A prisão recente serviu apenas para reabilitar Irving, como já tinha acontecido na década de 1980 com a prisão, e a reabilitação, de um desacreditado Robert Faurrisson. Seria improvável que Irving existisse se, antes dele, Faurrisson não tivesse emergido como o herói perseguido do revisionismo.

A ministra alemã e as brigadas de Londres acreditam que o extremismo na Europa se combate pela força da lei. Acreditam mal. A extrema-direita pode crescer no continente, sobretudo no Leste e, como se verá nas próximas presidenciais francesas, com o fenômeno Le Pen. Mas ela cresce por exclusiva culpa dos "partidos do centro": incapazes de reformar economicamente uma Europa estagnada e medrosa perante o "estrangeiro", os partidos instalados apenas contribuem para um mal-estar social que alimenta a besta do costume. E as bestas não quebram nozes. Quebram tudo.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca