Pensata

João Pereira Coutinho

05/02/2007

As maiores gracinhas

Ah, como é bela a Itália! E como são belos os italianos em matéria de amor! Neste preciso momento, a Europa acompanha mais uma telenovela de Silvio Berlusconi, promovida por sua digníssima e apaixonadíssima esposa. História simples: Berlusconi, ex-premiê de quem os italianos manifestamente sentem saudades, compareceu em festa social transmitida pela tv. Cruzou-se com duas belas mulheres - mulheres que, nas palavras de Woody Allen em seu último filme ("Scoop"), são "uma mais-valia para a sua raça". Como qualquer italiano que se preze, Silvio gostou do que viu e desfez-se em comentários loucos. A uma prometeu fuga imediata para qualquer lugar da Terra. A outra, confessou que se casava com ela, se obviamente já não fosse casado. Toda a gente riu. Toda a gente, exceto a sra. Berlusconi.

Veronica Lario, mulher de Silvio há 27 anos, não gostou do que ouviu. E escreveu carta para jornal italiano, exigindo desculpas públicas uma vez que as não tivera em privado. A Itália parou e esperou. Por quem? Por "Il Cavalieri", naturalmente, que respondeu à mulher nas páginas do mesmo jornal. Eu li a resposta e, tudo bem, não nego que soltei duas ou três lágrimas fáceis. Tirando as desculpas clássicas para o ato (trabalho, meu amor, excesso de trabalho), Silvio penitenciou-se pelas "graças irrefletidas" e prometeu a Veronica amor eterno. E Veronica?

No momento em que escrevo, não tenho notícias. Mas desconfio que Veronica não vai responder com igual leveza. Não vai e não pode: em todo o episódio, a sra. Berlusconi demonstrou uma tão completa falta de sentido de humor que seria surpreendente qualquer resposta à altura. Uma mulher com espírito apurado entenderia os galanteios de Silvio como puro exercício de romantismo pícaro, a exigir uma gargalhada (o homem tem 70 anos) ou, quando muito, um amante à altura (Veronica tem 50). Mas mulheres com sentido de humor são uma raridade e chegou o momento, solene e difícil, de refletir sobre o assunto.

O problema, aliás, não começou com o "affair" Berlusconi, que nem sequer chegou a sê-lo. Se citei Woody Allen no início do texto, foi precisamente por ter assistido, com prazer moderado, à última colheita do homem. E, ao assistir a "Scoop", mergulhei em pensamentos fundos sobre as relações difíceis entre o humor e o sexo frágil. Não que Woody, esse homem que nasceu na religião hebraica e se converteu ao Narcisismo, não continue o melhor frasista do cinema atual. E, Deus me perdoe, eu preferia cortar um dedo, ou dois, ou até um braço inteiro, a vergastar um amigo em público.

Não, não: o último Woody desilude por causa de Scarlett Johansson. No filme, a personagem de Scarlett é uma jornalista em início de carreira que, visitada por um fantasma e aconselhada por ele, inicia investigação de um serial killer londrino. A investigação leva Scarlett aos braços de um aristocrata local que é suspeito "numero uno" dos crimes cometidos. Não revelo o final, mas revelo os entretantos: Scarlett é um pequeno desastre porque caiu na tentação de ter piada. Pior: de mimetizar os tiques de Woody, como se os tiques de Woody funcionassem por osmose.

Não funcionam. Pior: quando Woody entra em cena, a cena é inteiramente dele. E se não fosse Woody Allen, qualquer homem seria mais convincente do que Scarlett. Porquê? Razão simples: Scarlett é demasiado bela para ter piada. E o humor só existe, e praticamente só existe no masculino, porque é ferramenta evolutiva indispensável: um mecanismo de conquista e salvação que permite ao macho, sobretudo ao macho feio, um trampolim intelectual para conquistar sua donzela.

Christopher Hitchens, colunista da "Vanity Fair", também refletiu sobre esse assunto em número recente da revista. Por que motivo as mulheres não têm sentido de humor? Ou, pelo menos, um sentido de humor comparável aos homens? Hitchens arranha a explicação sexual, mas acaba por escolher o papel sério da maternidade. O humor só existe por confronto com a morte; e esse confronto está interdito às mulheres, que ao gerarem vida e ao assumirem um papel de proteção e autoridade, não se podem dar ao luxo de desperdiçar cinismo e absurdo por aí.

Respeito Hitchens. Discordo de Hitchens. O humor não nasce em confronto com a morte. O humor nasce em confronto com as mulheres. Claro que as mulheres, às vezes, também são a morte, mas isso não invalida a tese. O humor é uma estratégia e as piadas são pequenos soldadinhos de chumbo que vamos espalhando pelos mapas das nossas conquistas. E cada risada feminina é uma bandeira a ondular no topo do nosso Suribachi. Desconfio que assim é desde os alvores da Humanidade - e imagino, sem qualquer esforço, nossos avós Neandertais a puxar pelo crânio limitado em busca de um grunhido hilariante, capaz de impressionar a macaquita da tribo. Nós, homens, temos milhares de anos de humor em cima. Por uma questão de sobrevivência. E as mulheres?

As mulheres não precisam de ter piada. Nunca precisaram, uma condição evolutiva que implicou um certo atrofiamento do chamado "musculus ridentis". É por isso que assistir a Scarlett Johansson em tentativas espúrias para fazer rir é altamente fora da marca. Não é por acaso que, numa das cenas antológicas do filme, Woody lhe pede expressamente para ela deixar as piadas para ele. Com razão. Uma mulher como Scarlett não precisa de ter piada. Basta-lhe, simplesmente, aparecer. Porque, como dizem os brasileiros com genuína sabedoria, Scarlett Johansson já é, ela mesma, a maior gracinha que existe.

João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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