Pensata

João Pereira Coutinho

19/02/2007

As manhãs de Filadélfia

Conheci Rocky Balboa demasiado tarde. Injusto. Rocky Balboa subiu aos ringues no ano em que eu nasci. Foi há trinta anos, quando Stallone tinha trinta anos também. E se o homem regressa, trinta anos depois, para fechar a série com a dignidade merecida, eu confesso que estarei na primeira fila. Este entusiasmo exige uma explicação.

Pessoal, sim, uma explicação pessoal: quando o assunto era "Rocky", o filme que em 1976 limpou o Óscar da Academia de Hollywood, a minha reação instintiva era o riso. Levar a sério "Rocky" era um pecado estético e até moral simplesmente intolerável para quem se alimentara com pratos mais requintados. A iconografia da coisa horrorizava qualquer cristão. O rosto de Stallone, de uma imobilidade grosseira, chegava e sobrava para um vómito profundo. E a voz, ou o grunhido que por ali se ouvia, era um insulto para ouvidos civilizados. Só morto me apanhavam num cinema, com o "Garanhão Italiano" a bailar no ringue.

Divulgação
Sylvester Stallone (Rocky Balboa) se esquiva de um cruzado de Carl Weathers (Apollo Creed) no filme "Rock - O Lutador", de 1976
Sylvester Stallone (Rocky Balboa) se esquiva de um cruzado de Carl Weathers (Apollo Creed) no filme "Rock - O Lutador", de 1976
Mas existe uma segunda explicação --pessoal, sempre pessoal-- para tamanho afastamento: eu aprecio boxe e, por herança paterna, fui visionando e colecionando, com certo grau de entendimento, os maiores bailados do quadrilátero. Recordo Sugar Ray Robinson em dança de morte com Jake La Motta, o "Touro Indomável" do Bronx que Scorsese levou às telas no melhor filme jamais feito sobre pecados e crucificações. Recordo Floyd Patterson e os três combates contra Ingemar Johansson: Patterson perdeu o primeiro, venceu o segundo e venceu o terceiro com uma elegância que só Ali conseguiria exibir mais tarde. Recordo o combate entre Joe Louis e o alemão Max Schmeling em 1938, ou seja, quinze meses antes da Segunda Guerra Mundial, o que confere ao caso uma dimensão histórica evidente. Louis venceu. Como venceu Rocky Marciano contra Jersey Joe Walcott, em 1952, para nunca mais perder um único combate. E, por falar em Rocky, recordo a luta real que muito provavelmente inspirou Stallone para filmar o seu "Rocky": um inacreditável enfrentamento entre Muhammad Ali e o obscuro Chuck Wepner, em 1975, em Cleveland. As apostas atiravam com Wepner para o tapete ainda no primeiro round. Wepner resistiu até ao fim, ou quase, perante um Ali que era, para todos os efeitos, indestrutível. Se Stallone não estava na audiência assistindo a tudo, eu francamente não sei onde ele estava.

Foi assim que eu conheci Rocky Balboa: com náusea de Rocky e admiração pelo desporto que Rocky, supostamente, insultara. Pior: Stallone retomara um nome sagrado para os amantes do pugilato (Rocky Marciano, que aliás vencera o título em Filadélfia) e colara-lhe uma personagem que eu já odiava sem ver.

Mas então cedi: foi numa tarde em que um cinema de bairro passava a coleção inteira. Começava com "Rocky" e avançava pelos números restantes. Num acesso de loucura e tédio, paguei a entrada, enfiei-me na sala e, relembrando palavras de amigos de imaculado bom gosto ("deves ver", "é um grande filme", "esquece os preconceitos"), ajeitei os óculos, moldei o corpo à cadeira e preparei-me para dormir. No final de "Rocky", o empregado da sala aproximou-se de mim como um juiz zeloso; verificou o meu estado físico e mental; talvez tenha feito a contagem até dez; e depois soou o gongo para confirmar o meu knock-out. Não me levantei. Não me podia levantar. Eu estava no tapete, mais inconsciente do que Foreman depois do combate no Zaire contra Ali. "Rocky" não era um grande filme. "Rocky" era mais raro do que um grande filme. "Rocky" era, simplesmente, um milagre.

Não um milagre sobre boxe, porque "Rocky" não é um filme sobre boxe. Mas é um filme sobre a luta: a luta pela decência humana, exatamente como os filmes de Capra que eu via e revia com imaculada gratidão. E Stallone? Stallone era agora um rosto branco, e pobre, e dramaticamente solitário, como devem ser os rostos dos fantasmas nas manhãs de Filadélfia. Lembro agora: depois do desafio que lhe é lançado pelo campeão de pesos pesados --sim, a ele, um miserável sem préstimo, para um combate desumano e até inumano pelo título-- o homem acorda na madrugada, despeja dois ou três ovos no copo que bebe com sonâmbulo entusiasmo e então sai para a rua. Bem sei que 1976 foi o ano das grandes odisseias solitárias (Travis Bickle dirigia táxis ali bem perto, na cidade maior). Mas a imagem mais profunda da solidão não está em "Taxi Driver", e Scorsese que me perdoe. Nunca o cinema filmou solidão urbana assim: acompanhando a corrida lenta, e até patética, de um homem treinando na madrugada. E nós, sentados na sala, sem saber ao certo se o espetáculo é para rir ou chorar. Falso dilema. É para rir e para chorar: quando Rocky sobe a longa escadaria do Museu de Arte de Filadélfia, onde ainda hoje os turistas gostam de imitar a escalada, a música de Bill Conti vai-se apagando até às últimas notas e a única coisa que resta é a respiração ofegante, e desesperada, de um vira-lata condenado. Não, não: aquilo não é cansaço. O cansaço não soa assim.

"Rocky" é feito disto. Quadros e quadros e quadros mais verdadeiros que a verdade. As piadas sem piada que Rocky conta para disfarçar a pobreza, ou o embaraço. A conversa paternal com uma menina do bairro, que ouve a prelecção sobre as "más companhias" para no final o ridicularizar e insultar. E a visita ao ringue na véspera do combate: o Madison Square Garden, casa mítica onde Rocky ganhou sempre (o Marciano, não o Balboa) e onde Rocky (o Balboa, não o Marciano) se prepara para perder. E ele sabe que vai perder. Quem não sabe? Contemplando o cartaz gigantesco com o desenho da sua figura, ele ainda comenta com o promotor do combate que a cor dos calções está errada. O outro, que apareceu de repente, sorri. E aconselha descanso. A cor? Dos calções? Um condenado tem direito a um último desejo, não a um último capricho.

E o último desejo de Rocky é aguentar. Até ao fim. Ele mesmo o afirma, nessa noite mais longa, quando regressa a casa e a namoradinha o espera na cama. Ele deita-se, de costas para ela; a câmera aproxima-se do rosto dele; e a voz de Stallone --esse velho grunhido que eu insultava sem escutar-- a voz, dizia eu, fala agora com uma dignidade que só o cinema clássico sabe honrar.

Toda a gente conhece a história posterior. Ou, melhor dizendo, as histórias posteriores. Sim, falo do combate, que ele perde, e, perdendo de pé, consegue vencer para lá do imaginável. E falo dos filmes -- medíocres, imensamente medíocres-- que se fizeram a seguir: sem fôlego, sem talento e, mais importante ainda, sem necessidade. E "necessidade" no duplo sentido do termo: porque qualquer outro Rocky, sem respeitar a matriz, seria uma traição a "Rocky"; e porque o primeiro de todos, na sua inclassificável beleza, só se explica por um estado de necessidade. A necessidade que leva um ator marginal a escrever um filme no osso, como se fosse o primeiro e o último combate de uma vida.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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