Pensata

João Pereira Coutinho

19/03/2007

Não matem o bebê

Na passada semana, o mundo escutou uma confissão. Será necessário relembrar? Khalid Sheikh Muhammed, que a CIA capturou em 2003, confessou uma longa lista de crimes que o transformam facilmente no maior terrorista da história. Segundo o próprio, Khalid foi o responsável supremo pelos atentados do 11 de setembro de 2001. Foi o executor material do jornalista Daniel Pearl, decapitado no Afeganistão em 2002. Foi o responsável pelo primeiro ataque ao World Trade Center, corria 1993. E, por vontade sua, tencionava repetir as proezas nos quatro cantos do globo, se Washington não tivesse chegado primeiro.

Infelizmente, Washington chegou primeiro e a maioria dos comentadores não perdeu um minuto de tempo a escutar as palavras da Khalid. As palavras do homem não merecem "credibilidade" porque as condições da captura, da prisão e do interrogatório viciaram o resultado final.

arquivo/AP
Khalid Sheikh Mohammed
Khalid Sheikh Mohammed
Eu não tenciono contestar a sabedoria e as absolutas certezas dos comentadores. E, em voz baixa, também confesso que não compro toda a história de Khalid, um evidente psicopata (e criminoso) que, com a pena de morte à frente, deseja partir deste mundo embrulhado na mortalha do heroísmo e do martírio.

Mas, em voz ainda mais baixa, eu não estou disposto a acompanhar a manada para o outro lado da cerca: o lado que transforma Khalid numa vítima do sistema "imperial" americano, incapaz de matar uma pulga e subitamente forçado a inventar tenebrosas ficções. Existe uma diferença entre acreditar em tudo, acreditar em alguma coisa e não acreditar em coisa alguma.

Essa diferença tem sido ignorada desde o 11 de setembro de 2001 e Nick Cohen, jornalista britânico e um homem de esquerda, enfrenta o problema em livro recente ("What's Left? How Liberals Lost Their Way"): com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o triunfo das economias de mercado sobre as variantes planificadas que apenas produziram miséria e tirania, as consciências "liberais" (ou seja, as consciências mais à esquerda) procuraram uma nova bandeira que as servisse. A bandeira foi rapidamente encontrada e erguida contra os Estados Unidos, independentemente dos atos praticados por Washington.

Se os Estados Unidos não agiam (como sucedeu, ao início, com os dramas do Timor antes da independência), Washington era acusado de isolacionalismo criminoso. Se os Estados Unidos agiam (como sucedeu no Afeganistão contra uma quadrilha reconhecidamente fanática), Washington era acusado de intervencionismo criminoso. Por ação, por inação -- o Mal tinha sempre nome e endereço.

E se falamos de Mal, falamos de Bem por contraste. Para Cohen, a falência do "socialismo real" não implicou apenas a demonização da América. Implicou a tolerância, e muitas vezes o apoio explícito, a ditadores ou terroristas que muito apropriadamente não falavam inglês. Contra a América, Saddam servia. Contra a América, o Taleban servia. Contra a América, Bin Laden servia. Porque os inimigos dos meus inimigos, meus amigos são. Ou não?

Nick Cohen recusa essa idéia infame e termina o ensaio com pergunta curial e até pessoal: como podem estas esquerdas recuperar a decência, depois da longa dança com ditadores e torcionários? A resposta, sem grande imaginação, talvez passe por separar as águas. Ou, mais especificamente, por não deitar fora o bebê com a água do banho.

Por incrível que pareça ao fanatismo anti-americano que anda por aí em festa, nas ruas de Londres, Damasco ou S. Paulo, é possível criticar a América de Bush, a inutilidade de Guantánamo, os erros do Iraque e a política externa dos "neoconservadores" sem necessariamente convidar terroristas ou psicopatas para jantar lá em casa.

Quando Khalid Sheikh Muhammed confessou o que confessou, a resposta do auditório não é rir de tudo. É perguntar, com prudência e ceticismo, que parte do espetáculo pode ser verdade.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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