Pensata

João Pereira Coutinho

07/03/2005

Bush, Caravaggio, dinossauros

21 de fevereiro

PARIS
- George W. Bush aterra na Europa. O namoro começa em Paris, com Chirac, e termina em Bratislava, na Eslováquia, com Vladimir Putin, o fuinha russo, ex-KGB, que vem enfiando a Rússia no velho caminho do autoritarismo e da ameaça continental. Dizem que a viagem é gesto de "reconciliação" e operação de "charme". Gargalhadas mil.

George não tem charme: sua cara plebeia horroriza o intelectual europeu, mais habituado a olhar para Moscovo --ou Havana-- com uma lágrima sentimental no canto do olho. Intelectual europeu gosta de fardas, gosta de botas marchando. Gosta de povo, sim, mas bem longe: povo fede.

E quando ouve falar em "reconciliação", o intelectual europeu começa logo a tratar da úlcera com pires de leite, como dizia Nelson Rodrigues (ah, saudades). Ninguém quer reconciliação com os Estados Unidos. Ninguém quer saber do Iraque para nada.

O Iraque é um detalhe. A idéia de reconciliação horroriza os europeus. Sobretudo aqueles que fizeram do ódio aos Estados Unidos uma carreira intelectual, académica e até moral. Se apagarmos o anti-americanismo da cabeça desta gente, não sobra nada.

Como foi que isto aconteceu? Explicações várias. Mas a história não começou com o Iraque. Nem, pensando bem, com a guerra do Vietnã. A história é mais funda, profunda e tem, no mínimo, dois séculos de existência. James W. Ceasar, em "Reconstructing America: The Symbol of America in Modern Thought" (livro fundamental para entender as origens intelectuais do anti-americanismo presente) explica como: desde o século 18 que os Estados Unidos são olhados por muitos intelectuais europeus como exemplo de corrupção natural e moral.

Um país degenerado em sua fauna e flora, como escrevia o Conde de Buffon. E, já se sabe, o que começa naturalmente, acaba politicamente.

Dito e feito. No século 19, a ideia de uma América vulgar, grotesca, decadente e disforme (no fundo, a "América McDonald's") estava criada. Os românticos contribuíram para o quadro. O poeta Heine, por exemplo, duvidava seriamente que os americanos tivessem alma. Nietzsche também.

E, com ele, todo o pensador herdeiro de Nietzsche, a começar em Heidegger, primus inter pares da filosofia continental do século 20: os Estados Unidos, pela sua "desumanidade" civilizacional, eram uma ameaça directa à "autenticidade do Ser". Curioso: Heidegger flirtou com os nazistas sem remorsos. Mas a ameça directa à "autenticidade do Ser" vinha do outro lado da margem. Nadando, nadando.

Como veio Bush --voando, voando. Nenhuma ilusão. Sorrisos servem para embelezar retratos. Mas quando Bush partir, o anti-americanismo fica.




23 de fevereiro

LONDRES
- Caravaggio em Londres para exposição da fase tardia: "Caravaggio: The Final Years", 16 telas que a National Gallery oferece até 22 de maio. Lá estarei, lá estarei. Por enquanto, vou lendo resenhas várias e encontro informação delirante na revista "The Economist": antes de Londres, a mostra passou por Nápoles. O acontecimento foi tão intenso que um napolitano, a cumprir prisão domiciliar, foi encontrado pela polícia na fila do museu para comprar ingresso.

Ah, quem arrisca a vida para ver Michelangelo Merisi (1571 - 1610), nome verdadeiro de Caravaggio, merece, pelo menos, um catálogo. Os promotores enviaram.

Que dizer de Caravaggio? Estudantes de arte gostam de titulaturas heróicas. O primeiro pintor moderno, etc., etc.. Não nego. Mas a frase tem dupla dimensão. Começa com dimensão pessoal: Caravaggio foi moderno porque a modernidade acabou por reconhecer (e premiar) os traços existenciais que transformaram Caravaggio em caso de polícia na Roma do século 17.

Um pintor colérico, amante de várias amantes, emocionalmente instável, sexualmente ambivalente (obrigado, Derek Jarman) e, cereja do bolo, homicida também: matou em 1606 mas é provável que tenha matado antes - e até depois, durante seu exílio pelo sul, onde acabaria por morrer. Tinha 39 anos. Viveu intensamente, morreu precocemente: James Dean avant la lettre. Perfeito.

Mas Caravaggio também é moderno porque respondeu modernamente à mais importante questão estética de toda a história da arte. O que entendemos nós por Belo? Onde encontrar a beleza verdadeira? Resposta de Caravaggio: pela imitação de nosso mundo --e não pela idealização do que não existe.

A atitude é revolucionária se compararmos Caravaggio com um seu contemporâneo, o sublime (e hoje esquecido) Annibale Carracci (1560 - 1609). Carracci resolveu seguir os mestres (sobretudo Rafael) na busca de uma beleza clássica. A sua "Virgem Chorando Cristo" é de uma serenidade irreal, embora com composição barroca, sentimental.

Caravaggio, não. Caravaggio recusou esta tradição. Beleza é verdade, camaradas. E a verdade exige uma recusa da "dignidade" bíblica das figuras sacras. As personagens de Caravaggio são sujas e feias, como os seres humanos sujos e feios do seu tempo (e do nosso).

Exemplo: quando os Carmelitas encomendaram ao pintor uma figura da Virgem para a Igreja de Santa Maria della Scala, em Roma, Caravaggio usou como modelo sua própria amante, uma prostituta afamada. Foi escândalo e ira, claro, ainda que a Igreja de Santa Maria tenha sido edificada para dar protecção às prostitutas do bairro de Trastevere (onde, meus amigos, se come e bebe divinamente; ainda hoje; mas adiante).

A sensibilidade de Caravaggio triunfou. Triunfou ainda em vida. E continuou depois da morte: com Velásquez, com a escola holandesa --e com o cinema de Hollywood, tão cheio do tenebrismo dramático do pintor. A "Flagelação", agora exposta em Londres, foi copiada por Mel Gibson em filme recente. E até Martin Scorsese prestou homenagem estética. Fez bem.

Moral da história? Não nego os méritos evidentes de Caravaggio. Não encontro, em toda a história da arte, tratamento igual de luz e cor (uma herança do maneirismo, que o pintor nunca recusou). Mas às vezes penso que a realidade não chega. Pessoalmente, penso até o contrário: que a arte só serve para esconder como somos grotescos e finitos. É a minha costela Gene Kelly.




4 de março

LISBOA
- Portugal amanhece com temperaturas negativas. De manhã à noite, o frio abre os jornais, o frio fecha os jornais. Não entendo a histeria. Gosto de frio. Só o calor me deprime terrivelmente.

Montesquieu tinha razão: o clima define os povos. Em África se matam o ano inteiro. Nenhum espanto. Quando o termómetro excede o razoável, eu próprio começo a alimentar ideias suicidas e homicidas. Não necessariamente por esta ordem, claro.

Mas pior é ouvir os sábios a dissertar sobre o clima. Sobre a forma criminosa como os homens interferem com o relógio do planeta. Nunca entendi a veracidade da conversa. Pior: um conhecimento vago de história ensina facilmente que o mundo já aqueceu (e arrefeceu) várias vezes, sem interferência humana. Os dinossauros não usavam desodorante. Deu no que deu.

Mais: quando falam no aquecimento global, lembro sempre momentos históricos particulares em que o aquecimento da Terra permitiu uma prosperidade inigualável.

Para citar exemplo prosaico, foi o aquecimento climatérico a partir do século 11 que lançou a Europa num período de prosperidade que só seria repetido sete séculos mais tarde. Os resultados foram uma festa. A população registrou seu maior crescimento. A agricultura conheceu revolução técnica só igualada na Inglaterra do século 18. As cidades dispararam. O comércio também. A inventividade humana transbordou. As universidades nasceram e floresceram. O mundo encolheu com a primeira revolução dos transportes. E a Europa --a começar por Portugal-- se preparou para o capítulo mais glorioso de sua existência.

As patrulhas ambientalistas são boas em histeria. Mas são fracas em história. Aquecimento global? Tudo bem. Se calhar, estamos mesmo precisando de aquecer um pouco. Mas só um pouco. Um grau, dois, eventualmente três. Eu quero conservar minha Magnum na gaveta.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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