Pensata

João Pereira Coutinho

02/04/2007

A rainha e o povo

Em 1997, eu estava em Londres quando a Princesa do Povo morreu. Falo de Diana Spencer e do acidente em Paris, que paralisou uma nação inteira. Acordei no dia seguinte, liguei a tv --um velho hábito, com que normalmente levanto o dia-- e, entre o sono e a realidade, fui ouvindo as palavras do âncora. Era verdade.

O caso não deixava de ter a sua importância social e política, mas nada me preparava para o que veio a seguir. Londres paralisou com a morte da princesa. Amigos meus, usualmente lúcidos e saudavelmente cínicos, não permitiam uma piada ligeira a respeito. Tentei várias. Falhei várias. O tempo era de luto e até familiares portugueses não deixaram de me telefonar, perguntando se eu estava "bem". Não, eu não estava bem. Na verdade, eu nunca estive tão só em Londres como nesses dias de setembro.

O tempo acabou por me dar alguma razão. Li há tempos que, no último aniversário da morte da princesa, os populares depositaram 8 bouquets de flores --vou repetir, por extenso: oito bouquets de flores às portas do Palácio de Buckingham. Quem diria. Em 1997, foram milhares, milhares. Também por lá andei, só para contemplar o espetáculo. Indescritível: lágrimas, revolta, abraços. Grupos em cânticos religiosos, com velas acesas em volta. Fotografias da princesa. Fotografias dos filhos da princesa. Fotografias da rainha Elisabeth 2º, com um bigodinho de Hitler e a suástica no braço. E, de norte a sul, a pergunta coletiva: onde estava a família real em momento tão dramático?

Naqueles dias de loucura à solta, havia quem dissesse, inteiramente a sério, que a família real matara a princesa. As razões variavam: a rainha detestava Diana; a rainha transtornara a pobre cabeça de Diana; a rainha praticamente obrigara Diana a procurar refúgio nos braços de um playboy. Sem falar das outras, ditas em voz baixa: Diana estava grávida de Dodi Al-Fayed; Diana preparava livro com revelações graves sobre a monarquia; Diana preparava assalto à monarquia, como Cromwell no século 17 (sim, essa última eu inventei).

Lembro esses dias lúgubres com o filme "A Rainha", uma reconstituição rigorosa e competente do período. Muito se escreveu sobre o filme, que valeu a Helen Mirren o óscar de Melhor Atriz e todos os prémios que existiam na lista. Justo, justíssimo. Mirren não é apenas exemplar na contenção dramática que confere à personagem uma grandeza histórica e emocional evidente. O gênio da atriz está, desde logo, na forma como caminha: um movimento masculino e masculinizado que é cópia perfeita de Isabel 2º.

Mas o filme tem interesse como documento político e até filosófico: ao revelar como Tony Blair, recém-chegado a Downing Street, e a própria Elisabeth 2º, entenderam o "espírito do tempo" e procuraram o compromisso possível entre duas formas de olhar o mundo.

Blair exibe a sua conhecida sensibilidade --popular, populista-- para ouvir as massas e tocar uma sinfonia a preceito. A "terceira via", que levou Blair (e Clinton) ao poder, assentava, entre outras coisas, numa submissão da razão política à emoção popular, apresentando o tribuno como parte do povo, capaz de partilhar suas aspirações e sofrimentos. "I feel your pain", dizia Clinton. Blair também disse em 1997: e a morte da princesa foi percepcionada como oportunidade única para mergulhar na multidão e mostrar a superioridade da moderna Reino Unido sobre a antiga.

E o antigo Reino Unido está em Elisabeth 2º: no seu sentido de decoro e estoicismo emocional, qualidades que, em momentos não muito distantes da história, eram vistas como virtudes, não como vícios. O único momento em que a rainha se permite à fraqueza e às lágrimas acontece, muito apropriadamente, a sós e no meio do nada, tendo a natureza como única testemunha. Mas mesmo esse momento dura pouco: no enquadramento, introduz-se um veado de porte real, que fita a rainha como que a recordar a sua obrigação em ser forte e digna.

Elisabeth 2º é forte e digna; mas a força e a dignidade, às vezes, podem exigir atos de compromisso com as circunstâncias. Isso é válido para Elisabeth 2º, que regressa a Buckingham e se dirige a todo o país em comunicação televisiva; mas também é válido para Blair, capaz de serenar os seus instintos mais oportunistas e até revolucionários, entendendo a importância da família real na própria história britânica.

História: nem mais. Há quatro séculos, um esquecido autor inglês, chamado George Savile mas mais conhecido como Marquês de Halifax, escrevia no seu "The Character of a Trimmer" que a principal qualidade de um estadista é saber mantêr o barco num justo equilíbrio, evitando as tentações da navegação pelos extremos. O "trimmer" do título mais não é do que o navegador experiente, capaz de mantêr o rumo da embarcação mas desviando-se dos precipícios.

"A Rainha" retoma Halifax e, retomando essa pequena bíblia do pensamento político britânico, oferece uma lição de prudência aos radicalismos próprios do tempo.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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