Pensata

João Pereira Coutinho

16/04/2007

A normalidade do medo

Fui assaltado em S. Paulo em outubro passado. Sobrevivi. Os contornos da história são fáceis de contar. Cheguei a Guarulhos pelo final da tarde. Tomei um táxi para o centro. Cheguei ao hotel (curiosamente chamado L'Hotel, junto à Paulista), subi os degraus, entrei no lobby. Junto ao balcão, com uma mocinha sorridente que já previa a minha chegada, disse as boas-tardes habituais. Então senti uma mão estranha e insistente a puxar pela sacola do laptop, que eu levava a tiracolo. Julguei que fosse um empregado do hotel mais apressado, solícito na sua ajuda ao patrício.

Não era. Um marginal de 15 ou 16 anos, visivelmente mais assustado do que eu, apontava uma arma que era maior do que ele. "É só o laptop", disse o cavalheiro. Eu suspirei fundo, recusei a ordem e, com um golpe certeiro, imobilizei o meliante, que voou dois metros até aterrar na calçada da rua, ensanguentado e inerte.

Mas só na minha imaginação. Em segundos, larguei a sacola, aconselhei calma e ele correu dali para fora. Houve suspiros no lobby, ninguém fora morto ou ferido. O hotel prometeu assumir todas as suas responsabilidades, pagando o prejuízo. As promessas foram como vieram. Pensando bem, esse foi uma espécie de segundo assalto.

Relembro essa história ao ler na última "Vanity Fair" um texto assombroso sobre o crime em S. Paulo. Escrito por William Langewiesche, tem como título "City of Fear" ("Cidade do Medo"), e é uma reconstituição pungente dos dias de terror que a cidade viveu no ano passado, quando o PCC paralisou a vida dos paulistanos. Não existe nenhuma informação que os brasileiros, e sobretudo os habitantes de S. Paulo, não conheçam já por experiência própria: para William Langewiesche, o PCC só existe porque não existe uma política prisional digna de nome; e porque o Estado não tem o monopólio da violência na cidade, permitindo que no seu seio cresçam organizações criminosas que se constituem como estados dentro do Estado. Exatamente como sucedeu com a Máfia italiana, que soube ocupar o vazio político e policial durante a construção, e a unificação, da Itália moderna.

Um pormenor, porém, parece escapar a Langewiesche --e esse pormenor é, pessoalmente falando, o traço mais assustador da criminalidade brasileira. Nos dias seguintes à minha experiência no hotel, eu contei a história a amigos e colegas de ofício que sorriam, e até riam, de todo o episódio. E, com naturalidade impressiva, todos eles relatavam uma lista generosa de assaltos, agressões e até seqüestros-relâmpago que sofreram no passado. Pior: que sofreram no passado e que esperavam continuar a sofrer no futuro, uma inevitabilidade serena e resignada. A minha experiência era um batismo, e um pequeno batismo, que fazia parte da paisagem.

Não nego que seja. Mas também não nego que existe algo de profundamente errado quando o crime se converte numa rotina comparável ao tráfego, ou à poluição urbana. E quando o roubo não é mais do que uma espécie de imposto informal que os brasileiros têm de pagar para viverem no seu próprio país.

A cidade do medo? Quase. Talvez o drama de S. Paulo não esteja no medo propriamente dito; mas na forma como o medo se transformou há muito em normalidade.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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