Pensata

João Pereira Coutinho

18/04/2005

God save the King

2 de abril

Só existe uma coisa mais bela do que chegar: é chegar sem aviso. Aterro em Londres, almoço em Oxford, viajo para o País de Gales. A meio caminho, adormeço sem contar. E quando acordo, acordo com Hay-on-Wye à minha frente. Hay-on-Wye: sonhei com esta terra durante dias e dias e dias. Aqui estou. Aqui está.

Primeiro, interessava saber se Hay existia. Mesmo. Ouvia falar: um povoado perdido na fronteira, umas centenas de habitantes e milhões de livros sem preço para assustar. Não acreditava. Pode existir uma aldeia no fim do mundo, com quarenta sebos e uma gente que vive para ler, reler, comprar e vender? Mas devia acreditar: sou homem de pouca fé, dizem, e a fé é uma doce surpresa que nos redime no final.

Posso contar a história do sítio? O nome, o nome: Hay significa "feno". Wye é nome de rio - o rio que atravessa esta aldeia que um lunático transformou na capital mundial de livros em segunda mão. Lunático, espera um pouco, eu já conto a tua história. Foi em 1961.

Quarenta anos depois, Hay é um pequeno paraíso e o primeiro conselho que os habitantes nos dão - sim, o primeiro - é para não estragar tudo com gente que não merece. Hay é um segredo que devemos partilhar com os melhores amigos. Estou quebrando a minha promessa. Para você, leitor: sim, para você.

Viaje para Londres. Depois, melhor pegar um carro. Almoçar em Oxford - sugiro o "The Mitre", na High Street, um restaurante que me salvou várias vezes na vida. Depois é dirigir sempre na direção de Gloucester. A paisagem se impõe: com Noel Coward a tocar na rádio, vamos deixando para trás a urbanidade e nossos fardos. Acordei e estava lá. Fácil, não?

Não, não é: o paraíso, como todos os paraísos, tem o seu criador. O criador se chama Richard Booth. Richard comprou o castelo arruinado de Hay e transformou o monumento em livraria. Importou milhares de livros e foi enchendo estantes. Momento crucial: não havia estantes para tantos livros comprados. Richard enfrentou a realidade - foi a primeira vez, foi a última vez - e jogou os livros no jardim. A população se aproximou dos livros rejeitados como os cristãos do Santo Graal. Foram levando tudo para casa. Leram. Releram. O filhos leram, releram. Mais livros chegavam. As estantes de Richard estavam dramaticamente lotadas.

Então, sem plano, sem desígnio, as casas de Hay foram se transformando em sebos improvisados. Livros vendidos nos correios. Nos bares. Nos açougues. No mercado. E os livros que não cabiam em lado nenhum, ficavam em lado nenhum: ao ar livre, em estantes improvisadas. À frente do castelo. Ainda hoje lá estão. Feche os olhos e imagine: a noite perfeita e os livros dormindo ao relento. Você se aproxima, escolhe sem pressa e deixa ficar moeda pequena por toda a obra de Mark Twain. Se deixar.

Eu deixei. Mas antes, apresento Margaret, que nos recebe à chegada. Viagem cansativa? Não, não, queremos ver os livros, alguém diz. Ah, maneiras, maneiras, o meu reino por maneiras. Eu, mais recatado, tento controlar a excitação do grupo e me atiro dramaticamente aos pés da nossa anfitriã: meu amor, esquece esta gente e me diz onde estão os livros, pela saúde dos teus filhos, e dos meus, e dos nossos. Eu te amo, Margaret. Será que você não percebe?

Margaret sorri e mostra a casa. A nossa casa. Na cozinha, um jantar completo. Pequeno-almoço para os dias seguintes. E na hora da despedida, um conselho: não tranquem a porta.

Eu, que vivo na selva, como todos vivemos, prometo que sim, que tranco, pode ficar tranquila. Margaret corrije: "Eu disse para não trancarem, porque não é preciso. Em Hay, ninguém tranca a porta". Toda a gente ri com uma excitação infantil. Ah, maneiras, maneiras - e alguém desmaia no meio da sala.

Sim, sou eu.

3 de abril

Dormi como um anjo, acordo como um anjo. Pulo da cama, subo a janela e penso em me atirar: se isto é o paraíso, talvez ganhe asas na descida. Gostava de ir voando até às Black Mountains que vigiam Hay, dar uma volta no céu e mergulhar em almofadas de Dickens que me esperam à chegada. Mas alguém está batendo à porta: hora de aterrar.

As ruas de Hay vão recebendo turistas avulsos. Poucos, poucos, que procuram muito, muito. Depois de pequeno-almoço leve - quatro salsichas, dois ovos mexidos, duas tiras de bacon, duas baguetes com doce de alperce, feijão, café forte, suco e mais quatro salsichas - vou descendo a rua principal. São onze da manhã: sim, talvez aguente até ao almoço.

As lojas sorriem para mim. Eu sorrio para as lojas. Entro num sebo, saio logo depois. Taquicardia. Sofro disto desde os quinze anos. E três pisos com livros a duas libras não ajudam meu pobre e cansado coração. Uma amiga, com doçura maternal, ainda pergunta: "Você viu a obra completa de P.G. Wodehouse a trinta libras? Tudo primeiras edições?" Eu peço uma ambulância mas alguém me empurra lá para dentro.

Desfazer o mito: Hay não é mais a aldeia de ingênuos pioneiros que foram vendendo os livros que liam e reliam. Hay floresceu e se multiplicou. Existem sebos para historiadores, sebos para filósofos. Existem sebos para amantes de literatura, existem sebos para amantes de literatura policial. Existem sebos especializados no século 18, existem sebos especializados no século 19. Existem sebos especializados em todos os séculos. Existem sebos que compram, existem sebos que vendem. Existem sebos que não são sebos: só vendem cinema e seus derivados. E por falar em cinema: existe uma sala de cinema na terra que foi transformada em sebo. É a loucura: você compra ingresso e o ecrã está devorado por estantes infindas de Napoleão e seus desastres.

Tudo isto é obra de Richard Booth, claro, que agora passa à minha frente. Richard não criou apenas este mundo. Richard criou um reino: comprou o castelo, declarou a independência da aldeia (juro, juro) e se proclamou Rei de Hay-on-Wye (idem, idem). Se dúvidas houvesse, Richard usa coroa, manto real (tom escarlate, bonitinho, um pouco sujo e gasto) e se passeia como um rei por seus reguengos. A certas horas, concede título a tudo que é cachorro. Sim, estou falando de bichos, não de humanos com vida de cachorro. Dizem que é demência. Discordo. Demência é nossa vida sem um toque de demência.

Richard me recebe. No castelo. Faço vénia. Ele aprecia o gesto e pergunta se eu tenho passaporte de Hay-on-Wye. Digo que não, me desculpe, Majestade, acabo de chegar. Ele me tranquiliza com gesto magnânimo e marca audiência. Quando sabe que sou jornalista, transforma a audiência em conferência de imprensa. Serve, Majestade, tudo serve. E depois, confessa suas mágoas: o turismo está destruindo Hay. O turismo, a BBC, os jornais ingleses (sobretudo o "The Guardian"), a União Européia, a humanidade. Difícil não concordar. Mas sem turismo, a BBC, os jornais ingleses, a União Européia e a humanidade, eu não estaria aqui.

Richard não me ouve. Alguém se aproxima com um cachorro --um labrador retriever, reverencial e temente-- e Richard acede, depois de prece em latim. Mais um "Sir" neste mundo plebeu.

6 de abril

Hora de regresso. Estou, tecnicamente falando, arruinado. Telefonei para casa no primeiro dia. Consegui um empréstimo. Voltei a telefonar poucas horas depois: tinha nos braços as obras completas de Edmund Burke, político e escritor irlandês, uma criança com duzentos anos, em doze volumes primorosamente conservados. E berrava, berrava. Por mim, por mim. Concederam um segundo empréstimo. À terceira tentativa, alguém atendeu e desligou logo a seguir. Das duas, uma: ou foi engano, ou estou deserdado. Desconfio que estou deserdado.

Deserdado e atrasado: o grupo vai enchendo as malas. Voo antes do meio-dia. Calma, calma, o meu reino etc. e tal.

Então folheio meus livros - cinquenta e sete - e vou encontrando em todos eles marcas de passado. A suprema riqueza de livros usados está nisto: letras de fantasmas que passaram pelo mundo com as alegrias e tristezas tão próprias da nossa condição. Chego a ler as passagens sublinhadas. A concordar ou discordar com anotações laterais. E gosto de ler o nome dos meus antepassados. "Liam Hastings", caligrafia cuidada, provavelmente mestre-escola viciado em ópio e com particular talento para açoitar meninos mal-comportados. E a data: 1912. Alguns, meticulosos, gostam de acrescentar o local: "King's College, Cambridge". Outros vieram de longe, como este livrinho de Swift que foi para "Calcutá" (em 1894) e regressou a casa sublinhado do princípio ao fim: que se passou contigo, "Henry Millstone"? Estou vendo, estou vendo: amor e sífilis, combinação fatal.

Abro um dos últimos volumes e encontro surpresa. O livrinho, recolha poética do esquecidíssimo Tennyson, foi pertença de um tal "H. Williamson" que não deixou memória. Nem ano. Nem local. Deixou simplesmente recorte de jornal antigo, que vou desdobrando com arqueológico cuidado. Uma foto de oficial. Sorridente. Uma legenda. A notícia de uma morte em combate. E o nome, com "Williamson" no final. Seria talvez um filho. Seria talvez um pai. Seria talvez familiar antigo, amante, irmão. Restou apenas isto: uma notícia anónima que tenho nas mãos. E o rosto, que imagino enterrado em lama, na demência de abril, o mês mais cruel.

Alguém buzina lá fora. Enfio tudo nas malas e vou descendo. Devagar, devagarinho: cinquenta e seis livros arrastados com esforço triunfal.

Tennyson ficou sobre a cama. Ah, doce Margaret, cuida dele para mim.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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