Pensata

Newton Carlos

11/04/2005

Memória como arma

Na Califórnia foi descoberto um antigo integrante de grupos de extermínio de El Salvador nos anos 80, época da política do ex-presidente Ronald Reagan de "empurrar o comunismo para trás" na América Central, transformada em zona de guerra.

Álvaro Saraiva teve participação direta no assassinato de dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, cujo sacrifício chocou a América Latina, resultou em protestos partidos de todos os lados e mergulhou o pais numa carnificina com 75 mil mortos. Saraiva foi indiciado por iniciativa de entidades de defesa dos direitos humanos

O processo está recheado de depoimentos e documentos relatando um dos mais trágicos capítulos salvadorenhos do que se passou na América Central sob as vistas de americanos nada tranqüilos. As premissas eram iguais às cultivadas pelo personagem do livro de Graham Greene ("O Americano Tranqüilo") tendo como tema a trama armada pela CIA de ampliação da intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. O comunismo iria tomar conta de tudo no sudeste asiático nos anos 60 e vinte anos depois iria fazer o mesmo na América Central. Um embaixador americano na Costa Rica ganhou o apelido de "el oncólogo", por declarar repetidamente que era preciso "extirpar o câncer do comunismo".

Em breve John Negroponte estará em audiência na comissão de relações exteriores do Senado americano. A razão da sabatina é a sua nomeação para diretor nacional de inteligência, cargo de importância capital em tempos de guerra contra o terrorismo. Mas o democratas da oposição querem fazer uma incursão no passado e revisar o papel que teve Negroponte na guerra "suja" dos anos 80 na América Central, quando o novo "czar" dos serviços de informações dos Estados Unidos foi embaixador em Honduras.

Em seu mandato a ajuda militar americana à pequena Honduras aumentou de quatro para 78 milhões de dólares por ano Negroponte era espécie de pró-consul de Reagan. Substituiu Jack R. Binns, da confiança do ex-presidente Jimmy Carter, cuja casa Branca mantinha um certo respeito por direitos humanos. Antes de deixar o posto Binns, segundo o "The Washington Post", avisou o Departamento de Estado que as coisas se tornavam brutais. Entrara na agenda dos quartéis o chamado "método argentino", de fácil compreensão tendo em vista os graus de barbarismo a que chegou a ditadura na Argentina. Binn contou um encontro que teve com o comandante das forças armadas hondurenhas, general Gustavo Alvarez Martinez.

Na conversa o general falou de "processos extralegais" talvez necessários para "cuidar dos "subversivos". A oposição democrata quer saber se Negroponte tinha conhecimento disso. As pressões para que ele solte alguma coisa não são de agora, as entidades de defesa dos direitos nunca deixaram de ficar em seu encalço, mas o que existem são respostas insuficientes ou propositadamente vagas. No "meu tempo" não havia violações, são acusações infundadas, etc. O exame de documentos liberados pelo Departamento de Estado, por decisão judicial, vão em outra direção.

Negroponte teria se ocupado da construção de uma boa imagem de Honduras, preocupado sobretudo com o público interno. Os que fora dos Estados Unidos se desdobravam em denúncias pouco importavam. O que contava era cobertura do Congresso americano e o que saia na mídia dos Estados Unidos. Honduras teve um papel central na guerra. Alojou os "contras" da Nicarágua e tornou-se dependência do Pentágono. "A memória é arma dos fracos contra os poderosos", disse Milan Kundera, autor de "A Insustentável Leveza do Ser" Dito e feito.
Newton Carlos é jornalista e escritor especializado em política internacional. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.

E-mail: newton.carlos@folha.com.br

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